sábado, 21 de maio de 2011

A TEOLOGIA MODERNA E A CRÍTICA DA BÍBLIA - C. S. Lewis - 3ª Parte


Continuação.......

* Este ensaio foi extraído de uma coletânea publicada das preleções e artigos de Lewis, intitulada Christian Reflections, editada por Walter Hooper. E foi publicado com a permissão do publicador, William B.Eerdmans Publishing Company.

  Todo esse tipo de crítica tenta reconstruir a gênese dos textos estudados. Essa reconstituição busca quais documentos desaparecidos cada autor usou; quando e onde ele escreveu; com quais propósitos; sob quais influências – a Sitz im Lebenz (situação vivencial) inteira dos textos. E isso é efetuado com imensa erudição e com grande engenho e arte. À primeira vista, esses esforços são muito convincentes. Chego a pensar que eu
mesmo poderia ser convencido por tais argumentos, não fora um certo encantamento mágico que sempre trago comigo – uma certa erva fabulosa, de propriedades mágicas – e que uso com sucesso contra tais engodos. Aqui, o leitor precisa desculpar-me se estou falando de mim mesmo por alguns instantes. Pois o valor daquilo que digo depende de ser ou não evidências colhidas em primeira mão.
  O que me protege definitivamente de todas essas reconstituições feitas pelos críticos é o fato de que tenho visto todas as tentativas deles do outro lado do prisma. Tenho observado os revisores reconstituírem a gênese de meus próprios livros, exatamente dessa forma.
  Enquanto um escritos não acompanha o processo, no caso de seus próprios livros, ele dificilmente acredita que tão pouco de revisão ordinária é usada pelos críticos. Eles não avaliam, nem elogiam, nem censuram o livro que estão criticando. Quase tudo quanto fazem é utilizarem-se de histórias imaginárias acerca do processo mediante o qual o escritos em pauta teria atuado. Os próprios vocábulos que esses revisores usam, ao elogiar ou censurar a obra, com freqüência dão a entender o que eles fazem. Eles elogiam uma passagem “espontânea” e censuram outra passagem como “elaborada”. Em outras palavras, pensam ser capazes de saber que o escritor escreveu uma dessas passagens currente calamo (“ao correr da pena”), ao passo que a segunda, invita Minerva (“contra a vontade de Minerva”), ou seja, sem destreza técnica e sem sabedoria.
  Qual o pequeno ou nenhum valor dessas reconstituições, feitas pelos críticos, aprendi desde cedo em minha carreira. Eu havia publicado um livro de ensaios. Aquele foi um livro para o qual me preparei de todo o coração, que tanto mexeu comigo e que escrevi com o mais agudo entusiasmo, acerca da personalidade de William Morris. No entanto, logo na primeira crítica que li a respeito, o revisor afirmava que era óbvio que eu tinha escrito sobre essa personagem sem ter demonstrado o mínimo interesse por ela. Que o leitor não me
compreenda mal. Acredito agora que o tal crítico tinha razão ao pensar que o ensaio sobre William Morris foi muito ruim; pelo menos todos concordaram com ele. Mas aonde ele estava totalmente equivocado foi ao imaginar as causas que teriam produzido tão embotado ensaio.
  Bem, o fato é que isso me deixou com a pulga atrás da orelha. Desde então, tenho vigiado, com alguma preocupação, histórias imaginárias similares, tanto acerca de meus próprios livros como acerca de livros de meus amigos, cuja história real eu saiba. Os revisores, tanto os amigáveis quanto os hostis, pespegam sobre os autores essas invencionices, fazendo-o com grande desenvoltura e confiança própria; dizem quais eventos públicos teriam tido influência direta sobre a mente dos autores, quanto a isso ou quanto a aquilo, quais outros
autores tê-los-iam influenciado, quais teriam sido suas intenções globais, qual tipo de audiência os autores estariam visando, e por que e quando os autores fizeram tudo quanto fizeram.

  Ora, antes de tudo preciso deixar registradas as minha impressões; e só então, em distinção a isso, poderei asseverar o que sou capaz de dizer com certeza. Minhas impressões são que, na totalidade de minha experiência, nenhuma dessas tentativas de adivinhação dos críticos tem estado ao lado da razão, e que tal método exibe um recorde de cem por cento de fracasso. Alguém poderia esperar que, devido à mera chance, os críticos acertassem tão freqüentemente quanto erram o alvo. Mas a minha nítida impressão é de que eles nunca acertam. Não consigo lembrar de um único acerto deles. Porém, visto que não tenho feito anotações cuidadosas a respeito, minhas meras impressões podem estar equivocadas. O que penso que posso afirmar com toda a certeza é que, usualmente, eles se equivocam...
  Ora, sem dúvida esses fatos deveriam fazer-nos parar para refletir. A reconstituição da história de um texto qualquer, quando esse texto é antigo, pode parecer deveras convincente. Em tal caso, entretanto, quem queira provar o contrário estará malhando em ferro frio, pois os resultados obtidos não poderão ser cotejados com os fatos. A fim de averiguarmos quão fidedigno é esse método, que mais poderíamos pedir senão que se
examine uma instância, onde o mesmo método foi usado em obras que podemos examinar, por serem recentes? Pois bem, é precisamente isso que tenho feito. E, quando assim fazemos, então descobrimos que os resultados são sempre ou quase sempre errados. Os “firmes resultados da erudição moderna”, na sua tentativa de descobrir por quais motivos algum livro antigo foi escrito, segundo podemos facilmente concluir, só são “firmes”
porque as pessoas que sabiam dos fatos já faleceram, e não podem desdizer o que os críticos asseguram com tanta autoconfiança. Os gigantescos ensaios em meu próprio campo, que procuraram reconstruir a história do livro Piers Plowman, ou o livro The Faerie Queene, provavelmente não passam das mais puras tapeações.
  Aventuro-me a comparar qualquer pretensioso que escreve uma crítica literária em uma revista semanal com os grandes eruditos que consagraram suas vidas inteiras ao estudo pormenorizado do Novo Testamento? Se aqueles primeiros sempre se equivocam, segue-se daí que estes últimos não podem sair-se melhor em seu trabalho?
  Há duas respostas para essa indagação. Em primeiro lugar, apesar de respeitar a erudição dos grandes críticos das Escrituras Sagradas, ainda não estou persuadido que o juízo deles deva ser igualmente respeitado. Em segundo lugar, consideremos com quantas avassaladoras vantagens iniciam os meros revisores. Eles procuram reconstituir a história de um livro escrito por alguém cuja língua pátria é a mesma que a deles; por alguém que é um contemporâneo, educado como eles o foram, que vivem mais ou menos na mesma
atmosfera mental e espiritual. Contam com tudo quanto pode ajudá-los. A superioridade no terreno do julgamento e da diligência que se poderia atribuir aos críticos da Bíblia terá de ser sobre-humana, se tiver de contrabalançar o fato de que por toda parte precisam enfrentar costumes, linguagens, características étnicas, pano de fundo religioso, hábitos de composição e pressupostos básicos que nenhuma erudição jamais poderia capacitar qualquer pessoa viva a saber com tanta certeza, intimidade e instinto, como os meros revisores de obras contemporâneos são capazes de atuar. E pelas mesmas razões, lembremo-nos de que os críticos da Bíblia, sem importar quais reconstituições imaginaram, jamais poderão estar comprovadamente equivocados. Marcos já morreu. E quando encontrarem Pedro, haverá questões mais urgentes a serem debatidas.

  Naturalmente, o leitor poderá dizer que esses revisores de obras contemporâneas são tolos, por tentarem adivinhar como algum livro, que eles não escreveram, foi escrito por outrem.
  Eles supõem que alguém escreve uma história, tal como eles mesmos tentariam escrever uma história; e o fato de tentarem realizar essa façanha, explica por que eles nunca produziram qualquer história e a publicaram. Mas, e os críticos da Bíblia apareceram sob melhor luz quando confrontados com aqueles outros? O Dr. Bultmann nunca escreveu um evangelho. As experiências de sua erudita, especializada e sem dúvida meritória vida realmente deram-lhe a capacidade de ler as mentes de homens que morreram faz muitos séculos, arrebatados como eles foram por aquilo que temos de considerar como a experiência religiosa mais central e atordoadora de toda a história humana? Não é uma incivilidade dizer – conforme admitiria o próprio Bultmann – que em todos os sentidos ele deve estar separado dos evangelistas por barreiras muito mais formidáveis – tanto
espirituais quanto intelectuais – como nunca poderiam ser interpostas entre meus revisores e mim.


Pesquisa: Pastor Charles Maciel Vieira

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