7. Abandono e Sofrimento
Sejam pacientes diante de todo sofrimento; se o amor por Deus é puro, não irão procurá-Lo menos no calvário do que no Tabor; certamente Ele deve ser mais amado nos momentos difíceis do que em outros, já que foi no Calvário que deu a maior demonstração de amor.
Não sejam como aqueles que se doam em um momento e se retiram em outro. Estes se doam apenas para serem acariciados e se arrancam quando são crucificados, ou buscam o consolo das criaturas.
Não, queridas almas, não há consolo em nada senão no amor da cruz e no total abandono;quem não experimenta a cruz, não experimenta as coisas de Deus (veja Mt 16,23). É impossível amar a Deus sem amar a cruz; um coração que experimenta a cruz, considera as coisas mais amargas uma doçura: "Garganta saciada despreza o favo de mel, garganta faminta acha doce todo amargo'" (Pr 27,7); pois, ela tem fome de Deus, na proporção de sua fome pela cruz. Deus nos dá a cruz e a cruz nos dá Deus.
É preciso ter a convicção de que há um avanço interno, quando há um progresso no caminho da cruz; o abandono e a cruz andam de mãos dadas.
Tão logo lhe seja apresentado algo na forma de sofrimento, provocando uma certa repugnância, resigne-se a Deus imediatamente, oferecendo-se a Ele em sacrifício: você irá descobrir então que quando a cruz chegar, não será tão difícil de carregar, pois você a desejou. Isso não nos impede de sentir o seu peso, como alguns acreditam; pois quando não sentimos a cruz, não sofremos. A sensibilidade de sofrer é uma das principais partes do sofrimento em si. Jesus Cristo escolheu enfrentar seu maior rigor. Normalmente suportamos a cruz na fraqueza, às vezes na força; tudo deve ser semelhante para nós na vontade de Deus.
8. Abandono e Revelação
O objetivo deste método é o de eliminar a existência de mistérios gravados na mente; mas, caso isso ocorra, que seja um meio peculiar de compartilhá-los com a alma. Jesus Cristo, a quem nos abandonamos e a quem seguimos como sendo o Caminho, a quem ouvimos como sendo a Verdade e sendo aquele que nos anima como a Vida (Jo 14,6), ao se impregnar na alma, imprimi ali as características destes diferentes estados. Carregar todos os estados de Jesus Cristo, é algo muito maior do que simplesmente meditar sobre eles. São Paulo carregou em seu corpo os estados de Jesus Cristo, "Doravante ninguém mais me moleste; Pois eu trago em meu corpo as marcas de Jesus" (Gl 6,17), mas ele não diz imaginar tais estados.
Neste estado de abandono, Jesus Cristo freqüentemente comunica algumas visões peculiares ou revelações de seus estados, o que se deve aceitar agradecidamente; é preciso se colocar à disposição daquilo que parece ser a Sua vontade; receber igualmente qualquer forma que Ele possa usar e não ter outra escolha senão a de buscá-Lo ardentemente, de habitar sempre com Ele e de mergulhar no nada diante Dele; aceitar indiscriminadamente todas as suas dádivas, sejam elas obscuridades ou iluminação; fecundidade ou infertilidade; fraqueza ou força; doçura ou amargor; tentações, distrações, dores, exaustão ou incerteza, e que nada disso retarde o nosso curso, nem por um minuto.
Deus compromete alguns, por vários anos, na contemplação e na experimentação de um único mistério; sua simples visão ou contemplação recolhe a alma; que sejam fiéis a este momento; mas, tão logo Deus queira retirar esta visão da alma, aceitem livremente a privação. Algumas privações são penosas diante da dificuldade de meditar sobre certos mistérios; mas não há motivos para tal dificuldade, já que um apego amoroso a Deus inclui todo tipo de devoção e aquele que se encontra tranqüilamente unido a Deus, está, de fato, perfeita e efetivamente aplicado a cada mistério divino. Quem ama a Deus, ama a tudo o que lhe pertence.
9. O Abandono e a Vida Santa
É assim que adquirimos virtudes com facilidade e segurança; pois como Deus é o princípio de toda virtude, tudo herda quem O possui; na mesma proporção em que avançamos em direção à sua posse, recebemos as mais eminentes virtudes. Pois, toda virtude é como uma máscara, uma aparência externa, mutável como as nossas vestes, se não forem concedidas do interior; só assim é que se pode dizer de forma genuína, essencial e permanente: "A filha de Tiro alegrará teu rosto com seus presentes, e os povos mais ricos com muitas jóias cravejadas de ouro" (Sl 45,13). Estas almas, acima de todas as outras, praticam a virtude nos graus mais elevados, embora não chamem à atenção para nenhuma virtude em particular. Deus, a quem estão unidas, as conduz a sua prática mais extensiva; Ele é extremamente ciumento e não lhes permiti o menor prazer.
Que ânsia pelo sofrimento possui estas almas, que assim ardem em amor divino! Como se precipitariam em austeridades excessivas, se tivessem permissão de seguir a própria inclinação! Não pensam em nada senão como agradar o Amado; começam a negligenciar e a esquecer de si mesmas, e na medida em que cresce o amor a Deus, aumenta também o desinteresse pela criatura.
Uma vez que se atinja esse método, um caminho que serve a todos, desde o mais ignorante ao mais erudito, toda a Igreja de Deus é facilmente reformada! Somente o AMOR é requisitado: "AMEM", diz Santo Agostinho, "e então façam o que quiserem". Pois, quando amamos verdadeiramente, não podemos fazer nada que possa ofender o objeto de nossos sentimentos.
10. Portas Adentro
Digo que é praticamente impossível alcançar a perfeita mortificação dos sentidos e das paixões. A razão é óbvia: a alma dá vigor e energia aos sentidos; os sentidos surgem e estimulam as paixões; um corpo morto não tem sensações, nem paixões, porque sua conexão com a alma está dissolvida. Todos os esforços para simplesmente retificar o exterior impelem a alma a se afastar ainda mais daquilo com que está tenra e zelosamente comprometida. Seus poderes tornam-se difusos e dispersados; pois, sendo sua atenção imediatamente direcionada a austeridade e a outras coisas externas, ela dá vigor a esses mesmos sentidos que deseja subjugar. Pois os sentidos não têm outra origem, de onde deriva seu vigor, do que a aplicação da alma a eles; o grau de sua vida e atividade é proporcional ao grau de atenção que a alma presta a eles. Esta vida dos sentidos se agita e provoca as paixões, ao invés de suprimi-las ou subjugá-las; a austeridade pode, de fato, enfraquecer o corpo, mas pelas razões já mencionadas, nunca pode tirar a vitalidade dos sentidos, muito menos sua atividade.
O único método para efetivar a mortificação é o recolhimento interior, através do qual a alma se volta totalmente e por inteiro para o interior, para possuir um Deus presente. Se direcionar todo seu vigor e energia a isso, esse ato simples a separa dos sentidos e, empregando todos os seus poderes internamente, faz com que eles enfraqueçam; quanto mais perto de Deus, mais separada estará do EU. Assim, naqueles em quem as atrações da graça são muito poderosas, geralmente o homem exterior é fraco e débil, inclusive sujeitos a desmaios.
Não quero com isso, desencorajar a mortificação; ela deve sempre acompanhar a oração, segundo o estado e a força individual ou como a obediência demanda. Mas, digo que a mortificação não deve ser nossa prática principal, nem devemos nos prescrever austeridades, mas simplesmente seguir as atrações internas da graça e nos preocupar com a divina presença; sem pensar particularmente na mortificação, Deus nos permitirá realizar várias espécies de mortificações. Aqueles que sinceramente se abandonam em Deus, Ele não dá descanso até ter subjugado neles tudo o que precisa ser mortificado.
Portanto, sigamos firmes na dedicação a Deus, e tudo será feito perfeitamente. Nem todos são capazes de austeridades externas, mas todos são capazes desta firmeza de atenção; na mortificação de olhos e ouvidos, que bombardeiam continuamente a ocupada imaginação com novos assuntos, há pouco perigo de se cair no excesso; mas Deus irá nos ensinar isso também, só precisamos seguir Seu Espírito.
A alma tem uma dupla vantagem procedendo desta maneira; pois, se retirando de objetivos exteriores, estará se aproximando cada vez mais de Deus; além disso, os poderes e virtudes sustentadores e preservadores secretos que a alma recebe, afasta o homem do pecado, enquanto esse se aproxima de Deus; desta forma, a conversão da alma torna-se firmemente estabelecida por uma questão de hábito.
11. Em Direção Ao Centro
"Voltai para aquele contra o qual se rebelaram tão profundamente os filhos de Israel" (Is 31,6). A conversão nada mais é do que um afastar-se da criatura para retornar à Deus.
Ela não é perfeita quando consiste simplesmente em afastar-se do pecado para voltar-se à graça (embora isso seja bom e essencial para a salvação).
Quando a alma se volta para Deus uma única vez, encontra uma maravilhosa facilidade em continuar firme na conversão; quanto mais ela permanece convertida, mais perto de Deus se aproxima e mais firmemente a Ele se adere; quanto mais é atraída para Ele, se faz necessário que o pai a remova da criatura, que Lhe é tão contrária; isso está tão estabelecido na conversão, que o estado torna-se habitual e natural.Ora, não pensemos que isto ocorre através do violento exercício de seus próprios poderes; pois a alma não é capaz de realizar tal obra, nem buscaria outra cooperação junto à graça divina do que auxiliá-la a se retirar de assuntos externos, a fim de que se volte para o interior; assim sendo, a alma nada mais tem a fazer além de continuar firme em sua aderência à Deus.
Deus possui uma virtude atrativa que atrai a alma para Si de forma cada vez mais poderosa, ao atrair, Ele purifica; o mesmo ocorre com o vapor grosseiro que emana do sol; enquanto ascende gradualmente, ele é rarefeito e se torna puro; de fato, o vapor contribui para sua ascensão apenas por ser passivo; mas a alma coopera livre e voluntariamente.
Este tipo de introversão é muito fácil e faz com que a alma avance naturalmente, sem esforço, porque Deus é o nosso centro. O centro sempre exerce uma virtude atrativa bastante poderosa; quanto mais a alma for espiritual e exaltada, mais violenta e irresistível são as suas atrações.
Além da virtude atrativa do centro, há, em cada criatura, uma forte tendência à reunião com seu centro, que é vigorosa e ativa na proporção da espiritualidade e perfeição do sujeito.
Caso algo não se volte para seu centro, é precipitado nesta direção com extrema rapidez, a menos que esteja impedido por algum obstáculo invencível. Uma pedra segura na mão não se encontra desimpedida a ponto de cair na terra, como sendo seu centro, pelo próprio peso. Quando a alma, pelo próprio esforço, recolhe-se, traz consigo a influência da tendência central, ela cai gradualmente para seu próprio centro, sem qualquer outra força além do peso do amor. Quanto mais passiva e tranqüila permanecer e quanto mais livre da passionalidade, mais rápido a alma avança, porque a energia da virtude atrativa central está desobstruída, podendo agir com total liberdade.
Toda nossa preocupação deve estar direcionada em conquistar o maior grau de recolhimento interior possível; que não sejamos desencorajados pelas dificuldades encontradas neste exercício; logo seremos recompensados por Deus com abundantes suprimentos da graça; o trabalho se tornará fácil se sincera e humildemente retirarmos nossos corações das distrações e ocupações exteriores, retornando ao nosso centro, com sentimentos repletos de ternura e serenidade. Quando, em qualquer momento, as paixões estão turbulentas, uma gentil retratação interior para com um Deus presente, basta para extingui-las; quaisquer outras formas de se opor às paixões mais as irritam do que as apaziguam.
12. Oração Contínua
A alma fiel ao exercício de amor e aderência a Deus, descrita acima, fica surpresa ao senti-Lo gradualmente tomar posse de todo o seu ser; ela desfruta de uma contínua sensação da presença, que vai se tornando natural; assim como a oração, a presença divina torna-se uma questão de hábito. A alma sente uma serenidade incomum penetrando gradualmente todas as suas faculdades. O Silêncio constitui agora todo a sua oração; enquanto Deus comunica um amor infundido, que é o princípio da benção inefável.
Ah, se me fosse permitido continuar com este assunto e descrever alguns graus da progressão infinita dos estados subseqüentes? Mas, no momento, escrevo para os principiantes e não devo ir além, mas aguardar o tempo de nosso Senhor para desenvolver o que pode ser aplicado a cada estado.
No entanto, é preciso interromper urgentemente toda auto-ação e auto-aplicação, a fim de que Deus unicamente possa atuar: Ele disse através do profeta Davi: "Aquietai-vos, e sabei que eu sou Deus" (Sl 46,10). Mas a criatura está tão desprovida de amor e tão apegada a seu próprio trabalho, que não acredita que isso possa funcionar, a menos que sentir, conhecer e distinguir todas as suas operações. Ignora que a dificuldade de observar seu movimento, é ocasionada pela velocidade de seu progresso; e que as operações de Deus absorvem aquelas da criatura, na medida em que aumenta mais e mais; as estrelas brilham antes do nascer do sol, mas gradualmente vão desaparecendo com o avanço de sua luz e tornam-se invisíveis, não por falta de luz em si, mas pelo excesso de luz no sol.
O mesmo ocorre aqui, pois há uma luz forte e universal que absorve todas as pequenas luzes distintas da alma; elas vão diminuindo e desaparecem sob sua poderosa influência; a atividade própria não mais é distinta.
Aqueles que acusam esta oração de inatividade, carregam um peso que só pode ser atribuído a falta de experiência. Ah, se pudessem ao menos fazer alguns esforços para alcançá-la, rapidamente ficariam cheio de luzes e conhecimento sobre ela!
A aparente inação é, de fato, não uma conseqüência da esterilidade, mas de abundância, como será facilmente percebido pela alma experiente; ela irá reconhecer que o silêncio está repleto e cheio de unção por causa da plenitude.
Há dois tipos de pessoas que guardam silêncio: aqueles que não tem nada a dizer e aqueles que tem muito a dizer. Este é o caso neste estado; o silêncio é ocasionado pelo excesso e não pela falta.
Afogar-se e morrer de sede são mortes muito diferentes; ainda assim se pode dizer que a água foi a causa de ambas; em um caso o que destrói é a abundância, no outro, a falta. Assim, a plenitude da graça paralisa a atividade do ser; portanto, é de extrema importância manter o máximo de silêncio.
A criança pendurada no seio de sua mãe, é uma ilustração viva do nosso assunto; ela começa a extrair o leite ao movimentar seus pequenos lábios; mas quando seu alimento flui abundantemente, contenta-se em engolir sem esforços; qualquer outra atitude iria machucá-la, derramar o leite e a forçaria a largar o peito.
Devemos atuar da mesma forma no início da oração, ao movimentar os lábios dos sentimentos; mas, tão logo o leite da graça divina flua livremente, nada devemos fazer senão ingeri-la docemente, em quietude; quando ela deixar de fluir, movimentar novamente os sentimentos, assim como a criança movimenta seus lábios. Quem atua de outra forma, não pode fazer melhor uso da graça, que é concedida para levar a alma ao repouso do Amor, e não para empurrá-la para a multiplicidade do ser.
Mas o que ocorre com o bebê que gentilmente e sem esforço bebe o leite? Quem acreditaria que assim receberia a nutrição? Quanto mais pacificamente se alimentar, melhor se desenvolve. O que se torna essa criança? Ela adormece no seio de sua mãe. Assim, a alma tranqüila e pacífica na oração, mergulha freqüentemente num adormecer místico, onde todos os seus poderes ficam em repouso, até que esteja totalmente preparada para este estado, do qual desfruta estas antecipações transitórias. Vejam que nesse processo a alma é guiada naturalmente, sem problemas, esforços, ciência ou estudo.
O interior não é uma fortaleza, para ser tomado com força e violência; mas um reino de paz, que deve ser conquistado unicamente pelo amor. Se alguém pretende seguir o pequeno caminho que apontei, será guiado à oração infundida. Deus não necessita de nada extraordinário e nem muito difícil; pelo contrário, Ele se agrada enormemente pela conduta simples e pueril.
As mais sublimes conquistas na religião, são aquelas facilmente alcançadas; as mais necessárias ordenações são as menos difíceis. O mesmo ocorre para as coisas naturais; se alguém pretende alcançaro mar, deve embarcar num rio, e irá ser conduzido a ele, sem sentir e sem erro. Se quiser ir até Deus, siga este caminho doce e simples, e chegará ao objeto desejado, com uma jornada tão fácil que causará surpresa.
Que possam ao menos tomar o caminho uma vez! Rapidamente irão perceber que tudo o que disse é pequeno, e que a experiência própria os conduzirão muito mais longe! O que temem? Por que não se lançam imediatamente nos braços do AMOR, estendendo-se na cruz para que Ele possa abraçá-los? Que riscos correm ao dependerem unicamente de Deus e ao abandonar-se inteiramente a Ele? Ah, ele não irá decepcionar, mas conceder uma abundância além de suas maiores expectativas; mas aqueles que esperam tudo de si mesmos, devem ouvir esta repreensão de Deus ao profeta Isaias: "De tanto andar ficaste cansada, mas nem por isso disseste: Isso é de desanimar!" (Is. 57,10 Vulg).
Pesquisa: Pr.Charles Maciel Vieira
A paz do Senhor pr. Maciel. Vim retribuir asua visita e conhecer o teu espaço aqui na net. Amo os escritos de Madame Guyon. Temos muito o que aprender com eles.
ResponderExcluirDeus te abençoe e também tua família e ministério.
Fica na paz.
Pra. Thaís Itaborahy
http://palavradevidaaocoracao.blogspot.com
Pr.Thaís, obrigado pelo comentario, Deus te bendiga.
ResponderExcluirrealmente a vida devocional merece ser alicerçada e abençoada na revelação de Deus pela vida de Madame Guyon. Deus te bendiga amiga pastora.
Pr.Charles Maciel Vieira