TRINTA ANOS DE SOSSEGO
No ano 117 morreu Trajano, e o seu sucessor, Adriano, continuou as perseguições. E foi só no ano 138, quando Antônio Pio subiu ao trono, que os cristãos ficaram de alguma maneira aliviados dessa opressão. Com o seu reinado brando e pacífico começou um período de sossego que durou perto de trinta anos; e durante esse tempo a Palavra de Deus teve livre curso e Cristo foi glorificado. E certo que houve alguns casos isolados de opressão, mas a perseguição geral tinha desaparecido e o Evangelho depressa se espalhou por todas as províncias dos domínios romanos.
A gloriosa mensagem foi levada para o Ocidente até nas extremidades da Gália e para o Oriente até a Armênia e a Assíria; e milhares daqueles que em vão tinham procurado a paz de coração nas mitologias de Roma e do Egito, escutaram avidamente as palavras da vida, e espontaneamente se tornaram discípulos de Cristo.
UMA NOVA PERSEGUIÇÃO
Contudo, com a subida ao trono de Marco Aurélio, começou uma nova opressão, e no segundo ano do seu reinado, as nuvens da perseguição começaram de novo a amontoar-se.
As várias inquietações quase se seguiram uma após outra com espantosa rapidez, e que pareciam, às vezes, perturbar as próprias instituições do Império, forneceram um pretexto fácil para a renovação das perseguições; e logo em seguida o antigo ódio pelos cristãos que havia muito estava guardado nos corações dos ímpios, começou mais uma vez a manifestar-se pelo antigo grito "Lancem os cristãos aos leões!" tão terrivelmente familiar aos ouvidos de muitos, e que passou como um sopro pestilento pelo Império Oriental. Assim teve origem a quarta perseguição geral.
MARTÍRIO DE POLICARPO
A maior força da tempestade que se aproximava sentiu-se na Ásia Menor, onde saíram os novos editos, e o nome de Policarpo, bispo em Esmirna, apareceu brilhantemente na lista dos mártires daquele tempo. Ao contrário de Inácio que se expunha desnecessariamente à vontade cega da populaça, Policarpo não recusou escutar os conselhos e pedidos dos seus amigos, e quando viu que estava sendo espiado em Esmirna retirou-se para uma aldeia próxima, e ali continuou o seu trabalho.
Sendo perseguido, foi para outra aldeia, exortando o povo que se encontrava no seu caminho; e assim foi vivendo dessa maneira errante até que os seus inimigos descobriram o lugar onde se refugiava. Então o velho bispo (avisado, segundo dizem, num sonho de que deveria glorificar a Deus, sofrendo morte de mártir) resignou-se com paciência à vontade de Deus, e entregou o seu corpo às mãos dos oficiais encarregados de o prenderem. Antes de deixar a casa, deu ordem para que lhes dessem de comer; e, em seguida, parecendo saber antecipadamente o que esperava, encomendou-se a Deus. Diz-se que o fervor de sua oração comoveu de tal maneira os oficiais que eles se arrependeram de ser os instrumentos da sua captura. Montaram-no num jumento, e trouxeram-no para Esmirna, onde estava reunida uma grande multidão para celebrar a festa dos pães asmos.
Por consideração pela sua idade avançada e pela sua sabedoria, Nicites, homem de grande influência, e seu filho Herodes, oficial da cidade, foram ao seu encontro e, fazendo-o entrar no seu carro, instaram com ele para que assegurasse a sua liberdade, tributando honras a César e consentindo em oferecer sacrifícios aos deuses. Ele recusou-se a isto e, por esse motivo, foi empurrado do carro com tal violência abaixo que na queda torceu uma coxa. Mas o velho servo de Deus continuou pacificamente o seu caminho, sem se perturbar com a rudeza de Herodes, indiferente aos gritos da multidão que, no seu ódio, empurrava-o de um lado para outro; e deste modo chegaram à arena.
POLICARPO E O GOVERNADOR
Era este o sítio onde tinham chegado os jogos e exposições sagradas; e conta-se que na ocasião de entrar na arena, uma voz, como que vinda do céu, exclamou: "Sê forte Policarpo, e porta-te como um homem". Seja como for, um poder que não era humano susteve o servo de Deus, e quando o cônsul, comovido com o seu aspecto venerável, pediu-lhe que jurasse pela alma de César, e dissesse: "Fora com os ímpios!" O velho mártir, apontando para os bancos cheios de gente, repetiu com tristeza: "Fora com os ímpios!" "Jurai", disse o governador, compadecido, "e eu vos mandarei embora. Renegai a Cristo." Mas Policarpo respondeu com brandura: "Tenho-o servido durante oitenta e sete anos, e nunca Ele me fez mal. Como posso eu agora blasfemar contra o meu Rei e Salvador?"
"Jurai pela alma de César", repetiu o governador ainda inclinado à compaixão, mas Policarpo respondeu: "Se julgais que hei de jurar pela alma de César como dizeis, e fingis não saber quem eu sou, ouvi a minha confissão livre: sou cristão; e se desejais conhecer a doutrina do cristianismo, concedei-me um dia para falar-vos e escutai-me". 0 governador, notando com inquietação o clamor da multidão, pediu ao ancião que abjurasse sua fé, mas Policarpo se negou a fazer isso. Tinham-lhe ensinado a honrar os poderes superiores, e sujeitar-se a eles porque eram ordenados por Deus, mas quanto ao povo, principalmente no estado atual de turbulência em que se encontrava, nada lhe apresentaria em sua defesa. "Tenho à mão animais ferozes", disse o governador, "lançar-vos-ei a eles, se não mudardes de opinião" - "Mandai-os vir", disse Policarpo tranqüilamente.
O velho peregrino alegrava-se com a perspectiva de se ver prontamente livre de um mundo ímpio e cheio de perseguições, e sua tranqüila intrepidez exasperou o governador, que por esse motivo ameaçou queimá-lo, mas o intrépido Policarpo respondeu: "Ameaçais-me com o fogo que arde por um momento, e depressa se apaga, mas nada sabeis da pena futura, e do fogo eterno reservado aos ímpios".
O governador perdeu completamente a paciência, mandou um arauto apregoar no meio da arena: "Policarpo é cristão". Esta proclamação foi repetida três vezes, como era de costume e a raiva da população chegou ao auge. Viram no velho prisioneiro um homem que tinha desprezado os seus deuses, e cujo ensino tinha retirado o povo dos seus templos, e tornou-se geral o grito de: "Lancem Policarpo aos leões!"
Mas a hora do espetáculo já tinha passado, e o asiarca que tinha aos seus cuidados os espetáculos públicos recusou-se a fazer a vontade do povo. Se ainda estavam dispostos a dar-lhe a morte, tinham de escolher qualquer outro dia: assim pois, se ouviu imediatamente o grito para que Policarpo fosse queimado. A lenha e a palha estavam ali à mão, e a vítima depois de ser despojada da sua capa, foi levada às pressas para o poste. Queriam pregá-lo a ele, mas Policarpo pediu-lhes para ser simplesmente atado, e concederam-lhe isso.
Tendo em seguida recomendado a sua alma a Deus deu o sinal ao algoz, e este logo lançou fogo à palha. Mas, diz a tradição, os acontecimentos maravilhosos do dia ainda não tinham chegado ao seu fim. Por qualquer razão desconhecida, as chamas não tocaram no corpo de Policarpo, e os espectadores, vendo-se enganados, olhavam uns para os outros na maior admiração.
Contudo, o ódio venceu a superstição, e pediram ao algoz que matasse a vítima a golpes de espada. Assim se fez, o golpe fatal foi imediatamente dado, e naquele momento de cruel martírio, o fiel servo do Senhor entregou a alma a Deus, e ficou para sempre longe do alcance dos seus perseguidores.
OUTROS MARTÍRIOS
Muitos outros, em nada inferiores na fé e valor a Poli-carpo, ainda que menos distintos pelas suas aptidões, sofreram durante esta perseguição, e seria de muito interesse falar de alguns se o espaço permitisse. Seria, por exemplo, interessante falar de Germano, um jovem cristão cuja constância e coragem deram um testemunho tão brilhante da realidade de sua fé, mesmo na hora solene de sua morte, que muitos se converteram; ou de Justino de Nápoles, o qual, tendo estudado todos os sistemas filosóficos, e ocupando um lugar de destaque entre os professores do seu tempo, tomou-se com alegria um discípulo do meigo e sublime Jesus. E maravilhoso dizer que ele depois selou com o seu sangue o testemunho que tinha dado e alcançou no seu martírio um nome nobre - o de Justino, o filósofo, por que ainda é conhecido, e pelo qual será chamado para receber a sua coroa de mártir.
PERSEGUIÇÃO EM LIÃO E VIENA
Em Lião e Viena também a fé dos crentes foi duramente provada, porque o inimigo das almas andava muito ativo. Toda a espécie de tortura que o espírito humano podia imaginar era infligida aos cristãos daquelas cidades; mas o número aumentava sempre; e qualquer esforço que se fizesse para exterminar a nova religião não fazia senão espalhá-la cada vez mais, e com maior rapidez. Foi ali que Blandina, uma escrava de aparência fraca e franzina, depois de sofrer com exemplar paciência as mais extraordinárias torturas, durante as quais os próprios perseguidores se cansaram, ganhou a coroa do martírio, e morreu dando glórias a Deus.
Ali também Santos, diácono da igreja, e Mauro, que havia pouco se convertera ao cristianismo, sofreram nobremente pela verdade, bem como Attalo, de Pérgamo; Potimo, bispo de Lyon, e muitos outros.
E assim, da mesma maneira que o metal precioso passa pelo fogo do refinador que o torna puro, também a Igreja de Deus passou pelo fogo e aflição, e uma grande parte da escória que andava ligada a ela separou-se e consumiu-se, enquanto que as fagulhas que saem do lume, levadas para aqui e para ali pelo vento da perseguição, atearam no peito de muitos o desejo de compreenderem este extraordinário assunto e, por assim dizer, entenderem a natureza deste novo metal que de tal modo podia suportar a prova de fogo.
UMA CARTA A JUSTINO
Parece que até este tempo, a igreja tinha conservado aquela simplicidade de conduta e culto de que temos alguns belos exemplos em Atos dos Apóstolos, e em outros livros. Conta o mártir Justino as práticas que se faziam no seu tempo, e que não deixam de ser interessantes: "Encontramo-nos no dia do Senhor", diz ele, "para adoração, nas cidades e vilas; lemos nos livros dos profetas e das memórias dos apóstolos tanto quanto o tempo nos permite. Acabada a leitura, o presidente ou bispo, num discurso ou sermão, exorta os fiéis a seguirem aqueles excelentes exemplos; em seguida todos se levantam e oram juntos. Depois disto trazem pão, vinho e água, e o presidente faz oração e dá graças conforme a sua habilidade, e toda a gente diz "Amém". Faz-se então a distribuição dos elementos abençoados a todos os presentes, e aos ausentes manda-se pelos diáconos.
"Aqueles que são ricos, e estão dispostos a contribuir dão o dinheiro que querem, cada qual conforme a sua vontade; e o que se junta é entregue ao presidente, que o distribui cuidadosamente para os órfãos e as viúvas, e para aqueles que por doença ou outro qualquer motivo estão necessitados, e também aos que se acham presos, e aos estrangeiros que residem conosco. Em suma, à todos aqueles que precisam de auxílio".
Que bela simplicidade de vida e de culto! Na verdade é isso em parte um exemplo da continuação "na doutrina dos apóstolos e no partir do pão e na oração", que se recomenda no livro de Atos dos Apóstolos, e que constitui um distintivo da primitiva cristandade.
Continua.......
Pesquisa: Pr.Charles Maciel Vieira
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