* Este ensaio foi extraído de uma coletânea publicada das preleções e artigos de Lewis, intitulada Christian Reflections, editada por Walter Hooper. E foi publicado com a permissão do publicador, William B.Eerdmans Publishing Company.
A TEOLOGIA MODERNA E A CRÍTICA DA BÍBLIA
C. S. Lewis*
A antiga ortodoxia tem sido solapada principalmente pela obra deletéria de teólogos engajados na crítica do Novo Testamento. A autoridade de especialistas naquela disciplina é a autoridade em deferência à qual somos solicitados a desistir de um imenso acúmulo de crenças compartilhadas em comum pela Igreja primitiva, pelos pais da Igreja, pela Idade Média, pela Reforma Protestante, pelos pregadores do século 19. Quero explicar aqui o que me deixa cético quanto a essa autoridade, ignorantemente cético, conforme muitos diriam após um exame superficial da questão. Mas o ceticismo é o pai da ignorância. É difícil alguém perseverar em um estudo detalhado quando tal estudioso não pode confiar prima facie em seus mestres.
Em primeiro lugar, o que quer que esses homens possam ser como críticos da Bíblia, desconfio deles como críticos. A mim parece que são fracos quanto a um bom juízo literário, mostrando-se incapazes de perceber a própria qualidade dos textos que examinam.
Pode parecer isso uma estranha acusação contra indivíduos que têm estudado esses livros a sua vida inteira. Mas talvez precisamente aí resida a dificuldade deles. Um homem que passou toda a sua juventude e idade adulta fazendo pesquisas minuciosas nos textos do Novo Testamento e nos estudos de outros homens sobre estes textos, cuja experiência literária sobre aqueles textos ressente-se de quaisquer padrões de comparação que só podem desenvolver-se após uma ampla e profunda e genial experiência com a literatura em geral,
conforme penso, tende muito a perder de vista as questões óbvias envolvidas. Se tal homem chega e diz que alguma coisa, em um dos evangelhos, é lendária ou romântica, então quero saber quantas lendas e romances ele já leu, o quanto está desenvolvido o seu gosto literário para poder detectar lendas e romances, e não quantos anos ele já passou estudando aquele evangelho. Porém, provavelmente seria melhor eu citar exemplos.
Em um comentário que atualmente já é bastante antigo, li que o quarto evangelho é considerado por certa escola crítica como um “romance espiritual”, como “um poema, e não uma história”, que deve ser aquilatado pelos mesmos cânones que a parábola de Natã, o livro de Jonas, o Paraíso Perdido, ou, mais exatamente ainda, o Peregrino de John Bunyan.
Depois que um crítico faz essa declaração, por qual motivo daríamos atenção a qualquer coisa que ele ainda possa dizer sobre qualquer livro do mundo? Notemos que este autor considerou o Peregrino, uma história que professa ser um mero sonho e que exibe sua natureza alegórica da maneira mais explícita, como o mais chegado paralelo do evangelho de João! Notemos também que tal autor nem deu atenção ao fato de que Milton não escondeu estar escrevendo uma poesia épica. Mas mesmo que deixemos de lado esses absurdos mais grosseiros e nos apeguemos ao livro de Jonas, ainda assim a insensibilidade desse autor é crassa – pois disse ele que Jonas é apenas um conto, sem quaisquer pretensões de historicidade, um incidente grotesco e certamente não destituído de uma veia humorística tipicamente judaica, embora, sem dúvida, distintivamente edificante. Voltemo-nos, em seguida, para o evangelho de João. Leiamos os seus diálogos: aquele entre Jesus e
a mulher samaritana, à beira do poço, ou então aquele outro, após a cura do cego de nascença. Examinemos em seguida os seus quadros mentais: Jesus (se me é permitido usar o termo) a escrever na areia com Seus próprios dedos; a inesquecível observação hvn dev nux (João 13.30), “E era noite”. Sim, tenho lido poemas, romances, literatura acerca de visões, lendas e mitos a vida toda. Sei com o que esse tipo de literatura se parece. Sei que em todo esse tipo de literatura não há nada que chegue à altura do quarto evangelho. Acerca
do texto do quarto evangelho só são cabíveis dois pontos de vista. Ou trata-se de uma reportagem – que se aproxima extraordinariamente dos fatos ocorridos, conforme disse Boswell. Ou então, algum escritor desconhecido, no século 2º d. C., sem quaisquer antecessores ou sucessores conhecidos, de súbito antecipou a técnica inteira da narrativa moderna, novelesca, realista. Se o evangelho de João é veraz, então deve ser alguma narrativa dessa categoria. O leitor que não puder perceber isso, simplesmente ainda não aprendeu a ler.
Na obra de Bultmann, Theology of the New Testament (pág. 30), encontramos um outro exemplo do que estamos ressaltando. Disse ele: “Observemos de que maneira nãoassimilada a predição sobre a parousia (ver Marcos 8.38) segue-se à predição sobre a paixão (Marcos 8.31).” O que Bultmann pode ter querido dizer? Não-assimilada? Bultmann acreditava que as predições acerca da parousia eram mais antigas que as predições a respeito da paixão. Por conseguinte, ele queria acreditar – e sem dúvida assim acreditava – que quando ocorriam as duas menções em uma mesma passagem, é que alguma discrepância ou ‘não-assimilação’ seria perceptível entre elas. Mas por certo ele impingiu isso sobre o texto sagrado com uma chocante falta de percepção. Pedro acabara de confessar que Jesus era o Ungido. O relâmpago de glória nem se apagara ainda quando começou aquela tenebrosa predição – o Filho do homem haveria de sofrer e morrer. E, então, o tremendo contraste foi reiterado. Pedro, embora tendo-se elevado por um momento, através de sua confissão do messiado de Jesus, chegou a tropeçar: e Jesus o repreendeu com aquelas terríveis palavras, “Arreda! Satanás.” E então, em meio à momentânea ruína em que Pedro se transformou (o que sucedeu com certa freqüência), a voz do Mestre, voltando-se para a multidão, generalizou a lição moral. Todos os seguidores
de Jesus precisam carregar a sua própria cruz. Esse receio diante do sofrimento, essa autopreservação, não corresponde às realidades da vida. Em seguida, de maneira melhor definida ainda, soou a convocação ao martírio. Ninguém pode desviar-se do reto caminho.
Se alguém negar a Cristo aqui e agora, Cristo haverá de negá-lo na outra vida. Lógica, emocional e imaginativamente, a seqüência mostra-se perfeita. Somente um Bultmann poderia pensar de outra forma, com sua Crítica de Forma.
Finalmente, meditemos no que saiu da pena desse mesmo Bultmann: “A personalidade de Jesus não tinha qualquer importância para a pregação de Paulo ou de João... De fato, a tradição da igreja primitiva nem ao menos preservou inconsistentemente um quadro descrito de Sua personalidade. Toda tentativa para reconstruir esse quadro tem permanecido como um jogo de imaginação subjetiva”.
Continua.........
Pesquisa: Pastor Charles Maciel Vieira
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