13. Abundância
A alma que já avançou a este ponto, não precisa de outra preparação além da quietude: pois, a presença de Deus durante o dia, que é o grande efeito, ou melhor, a continuação da oração, começa a ser infundida e é quase ininterrupta. A alma certamente desfruta de bênçãos transcendentes e descobre que Deus está mais intimamente presente a ela do que ela está para si mesma.
O único caminho de encontrá-lo é pela introversão. Tão logo os olhos do corpo se fecham, a alma se entrega à oração: ela se surpreende diante de tão grande graça e desfruta de uma conversa interna, que os assuntos exteriores não podem interromper.
O mesmo pode ser dito sobre as orações da sabedoria: "com ela me vieram todos os bens" (Sb 7,11). Pois, as virtudes fluem da alma para o exercício com tanta doçura e facilidade, que lhe parece natural, e a primavera viva desabrocha abundante e facilmente para todo o bem e numa insensibilidade para todo mal.
Que ela permaneça então fiel a este estado; e cuidado na escolha ou busca de outra disposição que não seja este simples repouso, como preparação tanto para a confissão como para a comunhão, para a ação ou oração; pois sua única vocação é ser preenchida por esta expansão divina. Eu não seria compreendida se falasse sobre as preparações necessárias para as ordenações, mas sim sobre a mais perfeita disposição interior onde podem ser recebidas.
14. Silêncio
"Mas Iahweh está em Seu santuário sagrado: Silêncio em sua presença, terra inteira!" (Hab 2,20).
O motivo pelo qual o silêncio interior se faz indispensável é a natureza essencial e eterna do Verbo; ele necessariamente requer disposições na alma correspondentes, em certo grau, à Sua natureza, como uma espécie de capacidade para a Sua própria recepção. A audição é um sentido formado para receber sons e é mais passivo do que ativo; ela recebe, mas não comunica sensações; se quisermos ouvir devemos prestar o ouvido para este fim. Cristo, o Verbo eterno, que deve ser comunicado a alma, a fim de conceder-lhe vida nova, requer a mais intensa atenção à sua voz, assim que nos falar interiormente.
As Sagradas Escrituras freqüentemente nos alerta a ouvir e a estar atento à voz de Deus; Aponto algumas das numerosas exortações a este respeito: "Atende-me, povo meu, dá-me ouvidos, gente minha! Porque de mim sairá uma lei, farei brilhar o meu direito como uma luz entre os povos" (Is.51,4); novamente: "Ouvi-me, vós, da casa de Jacó, tudo o que resta da casa de Israel, vós, a quem carreguei desde o seio materno, a quem levei desde o berço" (Is 46,3); também nos Salmos: "Ouve, filha; vê, dá atenção; esquece o teu povo e a casa de teu pai. Então o rei cobiçará a tua formosura; pois ele é o teu Senhor" (Sl. 45,10,11).
Devemos esquecer de nós mesmos e de todo interesse próprio para escutar e estar atento a Deus; estas duas ações simples, ou melhor, disposições passivas, produzem o amor de extrema beleza, que Ele mesmo comunica.
O silêncio exterior é bastante requisitado para o cultivo e melhoramento do interior; de fato, é impossível nos voltarmos verdadeiramente ao interior, sem amar o silêncio e o retiro. Deus disse pela boca de seu profeta: "Portanto, eis que eu a atrairei, e a levarei para o deserto, e lhe falarei ao coração", sem dúvidas, o ser engajado a Deus internamente é incompatível com o ser exterior guiado por milhares de insignificâncias.
Quando, por conta da fraqueza, nos encontramos descentrados, devemos voltar imediatamente para o interior; esse processo deve ser repetido tão logo ocorra a distração. Não é de grande valia estar recolhido e devotado por uma ou meia hora, se a unção e o espírito da oração não continua conosco durante todo o dia.
15. Uma Nova Visão da Confissão de Pecados
O auto-exame deve sempre preceder a confissão, mas a sua forma deve ser compatível com a alma. O trabalho daqueles que já avançaram ao grau que agora tratamos é abrir totalmente sua alma a Deus; Ele não deixará de iluminá4as e permitir que vejam a natureza peculiar de suas faltas. Este exame, contudo, deve ser pacífico e tranqüilo; devemos contar com Deus, a fim de descobrir e conhecer nossos pecados, muito mais do que com a diligência de nossa própria inspeção.
Quando forçamos o auto-exame, freqüentemente somos traídos e enganados pelo amor próprio, o que conduz ao erro: "Ai dos que ao mal chamam bem e ao bem mal" (Is. 5,20); mas quando mentimos descaradamente diante do Sol da retidão, seus raios divinos tornam os menores átomos visíveis. Devemos, então, perdoar o eu, e abandonar nossas almas em Deus, assim como no exame da confissão.
Quando as almas atingem este tipo de oração, nenhuma falta escapa da repreensão de Deus; assim que cometidas, são imediatamente reprovadas por uma queimação interna e uma dolorosa confusão. Tais são as inspeções Daquele que não possui mal algum a ser consolado; o único caminho é simplesmente se voltar a Deus e suportar a dor e as correções que Ele inflige.
Na medida em que Ele se torna o examinador incansável da alma, esta não pode mais se examinar; se for fiel ao seu abandono, a experiência provará que é muito mais efetivamente sondada por esta luz divina, do que por seu empenho próprio.
Aqueles que trilham o caminho devem ser orientados na questão da confissão, na qual podem se enganar. Quando começam a prestar contas de seus pecados, ao invés de arrependimento e contrição, devem começar a sentir; descobrem então, que o amor e a tranqüilidade penetram a alma docemente: mas, aqueles que não são propriamente instruídos resistem à esta sensação, e formam um ato de contrição; isso porque ouviram falar, e com verdade, que ela é um requisito. Mas não se dão conta que agindo desta forma perdem a contrição genuína ou o amor infundido, que supera infinitamente qualquer efeito produzido pela auto-correção; a contrição genuína permite a compreensão de outros atos como parte de um ato principal, em uma perfeição muito mais elevada, do que se fossem considerados distintamente. Não se preocupem em atuar de outra forma, sendo que Deus atua tão perfeitamente em neles e por eles. Desprezar o pecado desta forma, é desprezá-lo da mesma forma que Deus o faz. O amor mais puro é aquele que é de imediata operação na alma; por que então devemos ficar tão ansiosos pela ação? Permaneçamos no estado que ele nos designa, concordando com as instruções do homem sábio: "Não admires a conduta do pecador, mas confia no Senhor e permanece no teu trabalho" (Ec 11,22).
A alma se surpreenderá também diante da dificuldade de lembrar de suas faltas. Isso, porém não deve causar desconforto, primeiro porque o esquecimento de nossas faltas é uma prova de nossa purificação com relação a elas; neste grau de desenvolvimento, é melhor esquecer todo tipo de preocupação, a fim de que possamos nos lembrar unicamente de Deus. Em segundo lugar, porque, quando a confissão é um dever, Deus não deixará de mostrar nossas maiores faltas, já que Ele próprio nos examina; a alma sentirá o fim do exame mais bem realizado, do que poderia ser através de nossos próprios esforços.
Estas instruções, contudo, seriam todas incabíveis aos graus precedentes, enquanto a alma continua em seu estado ativo, quando é certo e necessário que em todas as coisas deve se exercer, na proporção de seu avanço. Eu exorto aqueles que chegaram a este estado mais avançado, que sigam estas instruções, e não variem suas ocupações simples, mesmo ao aproximarem-se da comunhão; que permaneçam em silêncio, e permitam que Deus atue livremente. Ele não pode ser mais bem recebido do que por Ele mesmo.
16. A Escritura
Neste estado, o método da leitura deve ser interrompido quando nos sentirmos recolhidos; permaneçamos então, quietos, lendo pouco e sempre deixando a leitura quando atraídos internamente.
A alma chamada a um estado de silêncio interior, não deve se ocupar de orações vocais; sempre que fizer uso delas e encontrar ali uma dificuldade e uma atração ao silêncio, que não faça uso da compulsão de perseverar, mas que se entregue aos impulsos internos, a não ser que a repetição destas orações seja uma obrigação. Em qualquer outro caso, é muito melhor não se queimar com nenhum apego à repetição de fórmulas, mas se deixar conduzir pelo Espírito Santo; desta forma, toda espécie de devoção é alcançada num grau mais eminente.
17. Oração de Pedidos?
A alma não deveria se surpreender ao se sentir incapaz de oferecer a Deus as petições que tem formalizado com facilidade; pois, neste estado, o Espírito intercede por ela de acordo com a vontade de Deus; é esse Espírito que auxilia nossas enfermidades; "Assim também o Espírito socorre a nossa fraqueza, Pois não sabemos o que pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis" (Rm 8,26). Devemos seguir os projetos de Deus, que tendem a nos desvestir de toda operação própria, para que as Suas possam substituí-las.
Que assim seja então em cada um de nós; não estejamos atados a nada, por melhor que possa parecer; nada é válido, se de alguma forma nos afasta daquilo que Deus deseja para cada um de nós. A vontade divina é mais valiosa que qualquer outro bem. Afastemos então todo interesse próprio e vivamos pela fé e pelo abandono; é neste ponto que aquela fé genuína começa a operar.
18. Distrações
Em caso de nos desviarmos por coisas externas ou cometermos uma falta, devemos nos voltar para o interior imediatamente; pois tendo com isso nos afastado de Deus, é preciso voltar para Ele o mais rápido possível, sofrendo a pena que Ele inflige.
É muito importante evitar a inquietação por conta de nossas faltas; ela surge de uma raiz secreta do orgulho, e de um amor pela nossa própria excelência; somos feridos ao sentirmos o que somos.
Se nos desencorajamos, enfraquecemos ainda mais; e das reflexões sobre nossas imperfeições, surge uma mortificação, que normalmente é pior do que as próprias imperfeições.
A alma verdadeiramente humilde não se surpreende diante de seus defeitos e faltas; quanto mais miserável se considera, mais se abandona a Deus, forçando uma aliança mais íntima com Ele, diante da necessidade que sente de seu auxílio. Devemos preferir a indução desta atuação, como o próprio Deus disse: "Vou instruir-te, indicando o caminho a seguir, com os olhos sobre ti, eu serei teu conselho". (Sl, 32,8).
19. Tentação
Um confronto direto com as distrações e as tentações só serve para aumentá-las e extrair a alma da aderência a Deus, que deveria ser sua única ocupação. Deveríamos simplesmente nos voltar contra o mal, e nos aproximar cada vez mais de Deus. Uma criancinha, ao perceber um monstro, não espera para lutar com ele, e dificilmente volta seus olhos para ele, mas rapidamente se encolhe no seio de sua mãe, garantindo sua segurança. "Deus está no meio dela", diz o Salmista, "jamais será abalada. Deus a ajudará desde antemanhã.". (Sl. 46,5).
Se atuarmos de outra forma, tentarmos atacar os inimigos com a nossa fraqueza, fatalmente iremos nos ferir, quando não totalmente derrotados; mas, permanecendo simplesmente na presença de Deus, encontraremos suplementos de força a nos apoiar. Esta era a fonte de Davi: "Coloco Iahweh à minha frente sem cessar, com ele à minha direita eu nunca vacilo. Por isso meu coração se alegra, minhas entranhas exultam e minha carne repousa em segurança" (Sl 16 8,9). No Êxodo é dito: "O Senhor pelejará por vós, e vós vos calareis" (Ex. 14,14).
20. Consumido
A devoção e o sacrifício fazem parte da oração, a qual, segundo São João, é um incenso cuja fumaça ascende a Deus; portanto, é dito no Apocalipse: "Veio outro anjo e ficou de pé junto ao altar, com um incensório de ouro, e foi-lhe dado muito incenso para oferecê-lo com as orações de todos os santos" (Ap. 8,3).
A oração é a efusão do coração na presença de Deus: "venho derramando a minha alma perante o Senhor", disse a mãe de Samuel (1 Sm. 1,15). A oração dos Reis Magos aos pés de Cristo no estábulo de Belém, foi indicada pelo incenso que ofereceram.A oração é um certo calor de amor derretendo, dissolvendo e sublimando a alma, fazendo com que ascenda a Deus; como a alma encontra-se dissolvida, o odor dela emana; estas doces exalações procedem do fogo do amor consumidor.
Isso está ilustrado nos Cânticos (Ct 1,12), onde a esposa diz: "Enquanto o rei está assentado à sua mesa, o meu nardo exala o seu perfume". A mesa é o centro da alma; quando Deus está ali e sabemos como habitar por perto e nos manter com Ele, a sagrada presença gradualmente dissolve a dureza da alma; ao se derreter, uma fragrância é exalada; É assim que o Amado fala sobre sua esposa, ao ver sua alma derreter enquanto fala: "Que é isso que sobe ao deserto, como colunas de fumo, perfumado de mirra e de incenso?" (Ct. 3,6).
A alma ascende a Deus ao entregar o EU ao poder destruidor e aniquilador do amor divino. Esse é um estado de sacrifício essencial à religião Cristã, no qual a alma permite ser destruída e aniquilada, a fim de prestar reverência à soberania de Deus; é como está escrito: "O poder do Senhor é grande e Ele só é honrado pelos humildes" (Ec 3,21). Pela destruição do EU, reconhecemos a suprema existência de Deus. Devemos deixar de existir no EU, a fim de que o Espírito do Verbo Eterno possa existir em nós: é desistindo da própria vida, que damos lugar à sua chegada; ao morrer para nós, fazemos com que Ele viva em nós.
Devemos entregar todo o nosso ser a Jesus Cristo e deixar de viver em nós mesmos, para que Ele se torne a nossa vida; "porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus" (Col.3,3). "Passem para mim", diz Deus, "todos vós que buscam a mim com sinceridade" (Ec.24,16). Mas como é este passar para Deus? Não é outra coisa senão nos deixar e nos abandonar, para que possamos estar perdidos em Deus; isso só pode ser efetivado pela aniquilação, a qual constituindo-se na verdadeira oração de adoração, devota unicamente à Deus todo louvor, honra, glória e domínio, pelos séculos dos séculos "(Ap. 5,13).
Esta oração da verdade é "adorar a Deus em Espírito e em Verdade" (Jo 4,23). "Em Espírito", porque penetramos a pureza daquele Espírito que ora em nosso interior e somos retirados de nosso próprio método carnal e humano; "Em Verdade", porque somos assim, situados na verdade do todo de Deus, e do nada da criatura.
Não há mais nada do que estas duas verdades, o TODO e o NADA; tudo o mais é falsidade. Podemos prestar homenagem ao TODO de Deus, somente em nossa própria aniquilação; esta não é alcançada antes que Ele, que nunca sofreu qualquer anulação na natureza, nos preencha instantaneamente de Si mesmo.
Ah, se pelo menos conhecêssemos as virtudes e as bênçãos que a alma extrai desta oração, não teríamos vontade de fazer qualquer outra coisa; Trata-se da pérola de grande valor; o tesouro oculto, (Mt. 13 44,45); aquele que a encontra, venderia livremente todos os seus bens para possuí-la; é a roda da água viva, de onde brota toda vida. É a adoração de Deus "em espírito e em verdade" (Jo 4 14,23); é a completa atuação dos mais puros preceitos evangélicos.
Jesus Cristo nos assegura de que "o reino de Deus está dentro de nós". (Lc 17,21) o que é verdade em dois sentidos: primeiro, quando Deus torna-se o Mestre e o Senhor pleno em nós; quando nada resiste ao seu domínio e nosso interior transforma-se em seu reino; quando possuímos a Deus, que é o Bem Supremo, também possuímos seu reino, onde há plenitude de alegria e onde alcançamos o fim de nossa criação. Assim, é dito: "servir a Deus é reinar". O fim de nossa criação, de fato, é desfrutar de Deus, até mesmo nesta vida; mas, quem pensa assim?
21. Silêncio – Nas Profundezas
Algumas pessoas quando ouvem falar da oração do silêncio, imaginam erroneamente que a alma permanece obtusa, morta e inativa; mas, inquestionavelmente, ela age de forma mais nobre e extensiva do que jamais tenha agido anteriormente; pois, o próprio Deus é seu motor e ela se movimenta pela ação de Seu Espírito. São Paulo nos teria "guiado pelo Espírito de Deus". (Rm 8,14).
Não significa que devemos interromper a ação, mas sim atuar através da intermediação interna de sua graça. Isso está muito bem representado pela visão das rodas do profeta Ezequiel, que possuíam um Espírito vivo; onde fosse o Espírito elas o acompanhavam; elas subiam e desciam, pois o Espírito da vida estava nelas, e quando iam não retornavam. (Ez 1 18,21). Da mesma forma, a alma poderia servir a vontade deste espírito vivificante, que nela se encontra, seguindo voluntariamente apenas o seu movimento. Estes movimentos nunca tendem ao retorno nas reflexões sobre as criaturas ou sobre o EU; ao contrário, vão sempre adiante, num incessante aproximar-se do fim.
Esta atividade da alma se apresenta com a maior tranqüilidade. Quando ela age por si só, o ato é forçado e contrariado e, portanto, mais facilmente distinguível; mas quando a ação está sob a influência do Espírito da Graça, ela é tão livre, fácil e natural, que parece como que se não agisse. "Trouxe-me para um lugar espaçoso; livrou-me porque ele se agradou de mim" (Sl. 18,19).
Quando a alma está centrada ou, em outras palavras, volta ao recolhimento, a atração central dá início a mais potente atividade, superando infinitamente em energia qualquer outra espécie. Nada, de fato, pode igualar a velocidade desta tendência ao centro; e ainda que seja uma atividade, ela é tão nobre, pacífica e cheia de tranqüilidade, tão natural e espontânea, que aparece para a alma como se não fosse nada.
Quando uma roda gira lentamente é possível perceber suas partes; mas, quando seu movimento é rápido não se distingue nada. Então, a alma que repousa em Deus, possui uma atividade muito mais nobre e elevada, ainda que ambas sejam pacíficas; quanto mais pacífica ela for, mais rápido é o seu curso; porque está se entregando àquele Espírito pelo qual é movida e direcionada.
Este Espírito que atrai não é outro senão o próprio Deus, que ao nos atrair, nos faz correr para Ele. Como compreende isso a esposa, quando diz: "Leva-me após ti, apressemos-nos" (Ct. 1,4). Atraia-me para Ti, O meu centro divino, pelo secreto surgimento da minha existência, e todos os meus poderes e sentidos Te seguirão! Esta simples atração é tanto um ungüento para cura como um perfume para o encantamento: nós seguimos, ela diz, a fragrância de teus perfumes; embora a atração seja tão poderosa, é seguida pela alma livremente, sem constrangimento; pois é igualmente deleitoso e impetuoso; e enquanto atrai pelo seu poder, nos carrega por sua doçura. "Atraia-me", diz a esposa, "e iremos correr atrás de Ti". Ela fala de si e para si: "atraia-me" - manteve a unidade do centro que é atraído! "iremos correr" - manteve a correspondência e o curso de todos os sentidos e poderes em seguir a atração do centro!
Ao invés de uma animadora lentidão, promovemos uma alta atividade ao incorporar uma total dependência do Espírito de Deus, como o princípio que nos move; pois Nele vivemos, nos movemos e existimos (At. 17,28). Esta humilde dependência do Espírito de Deus é indispensavelmente necessária, e faz com que a alma logo se atenha à unidade e simplicidade na qual foi criada.
Devemos, portanto, abandonar nossas múltiplas atividades, para penetrar a simplicidade e a unidade de Deus, em cuja imagem fomos originalmente formados (Gn 1,27). "O Espírito é um em múltiplo" (Sab. 7,22); sua unidade não impede sua multiplicidade. Entramos em sua unidade quando estamos unidos ao seu Espírito, e desta forma temos um e o mesmo espírito com Ele; somos múltiplos com relação a execução exterior de sua vontade, sem abandonar nosso estado de união.
Assim, quando somos totalmente movidos pelo Espírito Divino, que é infinitamente ativo, nossa atividade deve, de fato, ser mais energética do que aquela que nos é própria. Devemos nos render à orientação da sabedoria, "A sabedoria é mais móvel que qualquer movimento e, por sua pureza, tudo atravessa e penetra" (Sb. 7,24) e abdicando da dependência de sua ação, nossa atividade será verdadeiramente eficiente.
"Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez" (Jo 1,3). Deus nos formou originalmente em sua própria imagem e semelhança. Ele soprou em nós o Espírito de seu Verbo, aquele Sopro de Vida (Gn 2,7) que nos deu no momento da criação, que consiste na participação da imagem de Deus. Ora, esta VIDA é uma, simples, pura, íntima e sempre fecunda.
Tendo o demônio quebrado e deformado a imagem divina na alma através do pecado, a intersessão daquele mesmo Verbo soprado no momento de nossa criação, torna-se absolutamente necessária para a renovação. Era necessário que fosse Ele, porque Ele é a imagem expressa de seu Pai; nenhuma imagem pode ser reparada por seu próprio esforço, mas deve permanecer passiva para este fim, nas mãos daquele que labora.
Nossa atividade deve consistir em nos colocarmos num estado de suscetibilidade às impressões divinas e ter flexibilidade com todas as operações do Verbo Eterno. Enquanto uma tela não está fixa, o pintor não pode produzir uma pintura correta sobre ela; cada movimento do EU produz contornos errôneos; isso interrompe a obra e deforma o projeto deste adorável Pintor. Devemos então, permanecer em paz, e nos movimentarmos apenas quando Ele se movimenta em nós. "Porque assim como o Pai tem vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si mesmo" (Jo 5,26) e Ele deve dar vida a cada forma vivente.
O espírito da Igreja de Deus é o espírito do divino movimento. Seria ela idólatra, estéril ou infrutífera? Não; ela atua, mas sua atividade depende do Espírito de Deus, que a move e a governa. O mesmo deve acontecer com seus membros; para que sejam filhos espirituais da Igreja, devem ser movimentados pelo Espírito.
Como toda ação só pode ser estimada na proporção da grandeza e dignidade do princípio eficiente, esta ação é incontestavelmente mais NOBRE do que qualquer outra. Ações produzidas por um princípio divino, são DIVINAS; mas, ações da criatura, por melhor que possam parecer, são apenas HUMANAS, ou pelo menos virtuosas, mesmo que acompanhadas pela graça.
Jesus Cristo diz que Ele tem a Vida em Si: todos os outros seres possuem apenas uma vida emprestada; mas o Verbo possui a Vida em Si; comunicando a sua natureza, deseja concedê-la ao homem. Devemos fazer um espaço para os influxos desta vida, o que só ocorre pela expulsão e perda da vida Adâmica e da supressão da atividade do ser. Isto está de acordo com a afirmação de São Paulo: "E assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas" (2 Cor 5, 17), mas este estado só pode ser conquistado morrendo para nós mesmos e para todas as nossas atividades próprias, para que possam ser substituídas pela atividade de Deus.
Jesus Cristo exemplificou no Evangelho. Marta fez o que era correto; mas, como fez em seu próprio espírito, Cristo a reprovou. O espírito do homem é inquieto e turbulento; por esta razão ele realiza pouco, embora pareça fazer grande coisa. "Marta", diz o Cristo, "andas inquieta e te preocupa com muitas coisas;. Entretanto, pouco é necessário, ou mesmo uma só coisa; Maria pois escolheu aboa parte e esta não lhe será tirada". (Lc 10 41,42). E o que fez de Maria a escolhida? Repouso, tranqüilidade e paz. Ela aparentemente havia parado de agir, para que o Espírito de Cristo agisse nela; ela parou de viver, para que Cristo pudesse ser a sua vida.
Isso mostra quão necessário é a renúncia de nós mesmos e de toda nossa atividade, para seguir o Cristo; pois não podemos segui-lo, se não formos animados pelo seu Espírito. Para que seu espírito possa ser admitido, é preciso que o nosso seja banido: "Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele" (1 Cor. 6,17). Davi disse que era bom estar junto a Deus e Nele colocar o seu refúgio (Sl 73,28). O que é estar junto a Deus? É o princípio da união.
A união divina tem o seu começo, seu progresso, suas conquistas e sua consumação. A princípio, ela é uma inclinação para com Deus. Quando a alma se encontra introvertida, do modo já descrito, adquire a influência da atração central, e um ardente desejo de união; este é o começo. A alma se adere a Ele na medida em que mais se aproxima e finalmente se torna um, ou seja, um espírito com Ele; então aquele espírito que se afastou de Deus, retorna ao seu fim.
Neste caminho, se faz necessário que penetremos o que é movimento divino e espírito de Jesus Cristo. São Paulo diz: "Se alguém não tem o espírito de Cristo, não pertence a ele" (Rm 8,9); portanto, para ser de Cristo, é preciso estar preenchido do seu Espírito, e vazio do nosso próprio. O Apóstolo, na mesma passagem, prova a necessidade de sua divina influência: "Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus" (Rm 8,14).
O espírito da filiação divina é, então, o espírito do movimento divino: ele acrescenta "Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai (Rm 8, 15). Este espírito é o espírito de Cristo, através do qual participamos de sua filiação; "O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus" (Rm 8,16).
Quando a alma se entrega à influência deste Espírito abençoado, percebe o testemunho de sua divina filiação; ela sente também, com redobrada satisfação, que recebeu, não o espírito da escravidão, mas o da liberdade, a liberdade dos filhos de Deus; descobre que age livre e docemente, ainda que com vigor e infalibilidade.
O espírito da ação divina é tão necessário em todas as coisas, que São Paulo, na mesma passagem comenta sobre a dificuldade em saber o que pedir quando oramos: "O Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois não sabemos o que pedir como convém; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis" (Rm 8,26): Isso basta. Se não sabemos o que precisamos e nem orar como convém, e se o Espírito que está em nós, e ao qual nos resignamos, deve pedir por nós, não deveríamos permitir que Ele dê abertura aos inefáveis gemidos à nosso favor?
Este Espírito é o Espírito do Verbo, que é sempre ouvido, enquanto diz a Si mesmo: "Eu sabia que sempre me ouves" (Jo 11,42); se admitirmos livremente que este Espírito ore e interceda por nós, também seremos sempre ouvidos. Por que? Aprendamos do mesmo grande Apóstolo, o Místico habilidoso e Mestre da vida interior, quando acrescenta: "e aquele que perscruta os corações sabe qual o desejo do Espírito; pois, é segundo Deus que ele intercede pelos santos" (Rm 8,27); ou seja, o Espírito demanda apenas o que está em conformidade com a vontade de Deus. A vontade de Deus é que sejamos salvos e que nos tornemos perfeitos. Ele, portanto, intercede para que seja feito todo o necessário para a nossa perfeição.
Por que então, deveríamos perder tempo com coisas supérfluas, e nos perder na multiplicidade de nossos caminhos, sem ao menos dizer, vamos descansar em paz. O próprio Deus nos convida a deixar todas as preocupações por Ele; Ele reclama em Isaias, com inefável bondade, que a alma tem desperdiçado seus poderes e seus tesouros com milhares de questões exteriores, quando há tão pouco a fazer para obter tudo o que precisa e deseja: "Por que gastais dinheiro com aquilo que não é pão, e o produto do vosso trabalho com aquilo que não pode satisfazer? Ouvi-me com toda atenção e comei o que é bom: haveis de deleitar-vos com manjares revigorantes" (Is. 55,2).
O se ao menos conhecêssemos as benções de ouvir a Deus, e como a alma se fortalece com isso! "Silêncio, toda carne, diante do Senhor" (Zc 2,13); tudo deve parar tão logo Ele apareça. Mas para nos comprometermos ainda mais a um abandono, sem reservas, Deus nos assegura, através do mesmo profeta, de que nada devemos temer, porque ele cuida especialmente de nós: "Por acaso uma mulher se esquecerá da sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem eu não me esqueceria de ti" (Is. 49,15). Ó, palavras repletas de consolo! Quem então temeria abandonar-se totalmente à orientação de Deus?
Pesquisa: Pr.Charles Maciel Vieira
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