Novo papa
enfrentará crise com a China
Documentos sigilosos da Santa Sé obtidos pelo 'Estado'
mostram que tensão entre Vaticano e Pequim atingiu pior nível em 30 anos
JAMIL CHADE - CORRESPONDENTE - O Estado de S.Paulo
GENEBRA - Quando o próximo papa assumir o trono de São Pedro,
encontrará em sua mesa dezenas de dossiês complicados. Mas, um deles promete
ser particularmente espinhoso: o que trata da relação entre o Vaticano e a
China. Documentos sigilosos de diversas embaixadas europeias e relatórios
internos da diplomacia da Santa Sé obtidos pelo Estado revelam os desafios e as
prioridades da Igreja com as várias regiões do mundo.
Um dos maiores obstáculos, segundo as informações que constam
nesses documentos, é a relação entre duas entidades que se consideram centros
do mundo. O material aponta que, durante os últimos anos do pontificado de
Bento XVI, a relação entre o Vaticano e Pequim atingiu seu pior momento em 50
anos.
No centro do debate está a insistência do governo de
controlar quem são os bispos chineses, um ato que, para o Vaticano, dá a
dimensão da falta de liberdade religiosa no país. No final do ano passado,
Pequim simplesmente passou a ordenar bispos, sem a autorização do Vaticano,
além de prender um dos religiosos considerados "ilegítimos".
Segundo os documentos, a existência de duas Igrejas Católicas
na China é o motivo da tensão. Uma é a oficial do regime comunista, conhecida
como Associação Católica Patriótica da China; a outra, que é obrigada a atuar
de forma semiclandestina, é a Igreja Católica reconhecida pelo Vaticano.
Se essa era uma realidade histórica, ela ganhou contornos de
crise nos últimos anos. Entre 1990 e 2006, um entendimento entre o Vaticano e
Pequim determinava que bispos seriam nomeados com a aprovação dos dois lados.
Mas, desde a chegada de Bento XVI na Santa Sé, os chineses optaram por
simplesmente ignorar o Vaticano. Pequim nomeou seis bispos desde então e deixou
de reconhecer 15 nomes apresentados pelo Vaticano.
Joseph Yue Fusheng foi um dos casos. Ele foi nomeado bispo de
Harbin em 2012, sem a aprovação do Vaticano, em uma cerimonia na qual bispos
leais ao Vaticano foram obrigados a participar para tentar demonstrar aos
católicos a legitimidade do ato. A Santa Sé o excomungou um dia depois.
O conflito ficou claro quando, também no ano passado, um
bispo nomeado pelo governo comunista em Xangai, Thaddeus Ma Daqin, usou sua
primeira missa para anunciar que estava abandonando a Associação Patriótica. Na
missa seguinte, ele não apareceu e teria sido levado a um seminário nos
arredores da cidade. O governo afirmou ao Vaticano que ele estava
"repousando".
Tentativas. Segundo os informes, Bento XVI tentou mediar a
crise para proteger os 12 milhões de católicos chineses. Suas iniciativas,
porém, apenas aprofundaram a crise. Sete meses depois de se tornar papa, Bento
XVI publicou uma carta aos católicos chineses, garantindo que a Santa Sé
atenderia às suas necessidades. A mensagem foi considerada por Pequim uma
ameaça.
O então papa enviou grupos de diplomatas da Santa Sé em
diversas ocasiões para negociar um entendimento. Mas as condições apresentadas
pelo Vaticano eram inaceitáveis para os chineses: a garantia de liberdade
religiosa e a manutenção das relações diplomáticas entre a Santa Sé e Taiwan.
Em um documento de um governo europeu relatando encontros em
2007, o funcionário do Vaticano encarregado das relações com Pequim, Giancarlo
Rota-Graziosi, garantiu que as reuniões haviam sido um fracasso. "Estou
pessimista em relação às chances de um acordo para normalizar as
relações", indicou. "Não vejo esperança", disse o próprio
negociador.
Naquele mesmo momento, Pequim teria plantado informações em
jornais oficiais em que indicava que um acordo estava prestes a ser assinado.
Mas, para o Vaticano, aquilo era "publicidade para mostrar abertura às
vésperas dos Jogos Olímpicos de Pequim de 2008".
Num outro documento, o padre de Sichuan, Luo Xuegang, relata
o controle que a Igreja passou a sofrer das autoridades. Ao mesmo tempo em que
o governo propunha dar dinheiro para renovar igrejas leais à Pequim, vetava
qualquer novo templo.
Prisões reveladas. O impasse foi mantido em encontros
realizados em 2009 entre o Vaticano e Pequim. Na época, a Santa Sé aprofundou a
crise, ao revelar a governos estrangeiros que seus bispos estavam sendo presos.
Um deles fora detido dias antes da Páscoa para impedir que pregasse diante de
milhares de pessoas. O governo também passou a cobrar 10% de impostos sobre o
custo de qualquer ato organizado pela Igreja.
Documentos do mesmo ano mostram que bispos leais ao papa
resistiram à pressão do governo e não foram às comemorações dos 50 anos da
Associação Patriótica. O Vaticano passou a acusar Pequim de fazer "lavagem
cerebral" nos padres da entidade e controlar homilias.
Diante da tensão, a estratégia da Santa Sé é a de tentar
manter uma unidade entre as duas comunidades católicas na China, ajudar a
treinar os padres e, acima de tudo, aguardar com paciência a chegada de novas
lideranças em Pequim que possam rever o relacionamento.
Os documentos mostram que o Vaticano não tem ilusões de que a
crise será solucionada a curto prazo. Coincidência ou não, durante a despedida
de Bento XVI na Praça São Pedro, um grupo carregando uma bandeira da China
insistia em estar presente para alertar ao próximo papa que a situação dos
católicos estava longe de ser resolvida.
Fonte: http://www.estadao.com.br/
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