sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

PAULO E A JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ - INTRODUÇÃO (JAMES D. G. DUNN)


  Como o ensinamento de Paulo sobre a justificação pela fé está relacionado com a sua conversão? A pergunta é importante para este Coloquium porque a justificação pela fé tem sido considerada frequentemente dentro da tradição cristã e na pesquisa do NT como a quintessência do evangelho e da teologia de Paulo. E exatamente porque o assunto é tão vital, já que toca no centro nervoso da fé pessoal, um desacordo nas respostas à pergunta facilmente pode causar turbulências, e a discussão pode ser interrompida por causa de pressupostos não declarados, ou mesmo pode reavivar sensibilidades adormecidas, com consequências desastrosas para um debate construtivo.

  Os parâmetros do desacordo podem ser esboçados como segue. Por um lado, por uma série de razões, é lógico assumir que a teologia da justificação de Paulo era um resultado direto de seu encontro com o Cristo vivo na estrada para Damasco. No coração da lógica está a convicção de que aquilo que Paulo experimentou na estrada de Damasco fora a justificação pela fé, e que sua teologia da justificação era em grande parte simplesmente uma elaboração e consequência de sua experiência. Um texto-chave que sustenta tal ideia é F1 3.7-9, em que a descoberta de Cristo é diretamente vinculada a uma nova apreciação daquilo que significa realmente a justiça de Deus através da fé. A luz disto, é natural vincular outros textos-chave como Rm 4.4-5 e 10.4 às outras expressões daquilo que Paulo descobriu em seu encontro com o Cristo ressuscitado.

  Nós devemos notar que esta exposição básica não exige urna análise mais detalhada da experiência interior e do processo de pensamento de Paulo, nem mesmo depende dela. Por exemplo, não é necessário argumentar que Paulo já tivesse um grave problema de culpa antes de sua conversão: as passagens-chave nas quais Paulo se refere aos elementos que levaram a sua conversão (G1 1.13-14; F1 3.5-6) não oferecem pistas acerca de uma consciência atormentada (por causa de Estevão, ou seja, o que for); e Paulo nunca menciona algum "arrependimento" quando fala sobre a conversão ou a respeito da justificação. Tampouco depende de um relato detalhado sobre a maneira como a atitude de Paulo acerca da Lei pode ter mudado no processo (a Lei condenou Cristo; Deus ressuscitou Cristo; portanto, a Lei é uma inutilidade, e a justificação não é pela Lei). É claro que o sentido de G1 2.19 ("Eu, através da Lei, morri para a Lei") tem de ser decifrado, mas o sentido específico não é elucidado por qualquer um dos escritos de Paulo sobre o assunto. A exposição tradicional da correlação entre a conversão de Paulo e seu ensinamento sobre a justificação não depende nem mesmo das construções de um texto como 1 Tm 1.15- 16 (a conversão de Paulo = seu recebimento de misericórdia como "o pior dos pecadores"), cuja falta de correlação com Gl 1.13-14 e Fl 3.5-6 torna o seu entendimento problemático caso se pense que tal testemunha sobre o modo como a autocompreensão do próprio Paulo foi transformada pelo evento na estrada para Damasco.

  Por outro lado, uma minoria de vozes tem repetidamente chamado a atenção para duas características daquilo que Paulo diz sobre os dois assuntos (sua conversão e a justificação). Uma é que a doutrina paulina da justificação através da fé surgiu diretamente do e/ ou dentro do contexto de sua missão aos gentios. Surgiu como sua resposta à pergunta: como gentios podem ser aceitos pelo Deus de Israel e por Jesus?2 Esta é a clara implicação das principais exposições da justificação pela fé que Paulo oferece em Gálatas 2-3 e Romanos 3-4. A outra é que o significado principal do encontro de Paulo com o Cristo ressuscitado parece ter sido o seu chamado para ser missionário/apóstolo dos gentios (G1 1.15-16; ICor 9.1; 15.8-10; cf. At 9.15; 22.10; 26.16-18). Os ecos de Is 42.7,49.1,6 e Jr 1.5 em algumas dessas passagens sublinham o fato de que, enquanto nós naturalmente pensamos ser uma conversão o seu encontro na estrada para Damasco, Paulo pensa dele mais naturalmente como uma vocação profética.

  Ao interpretar os dados assim, a sequência da reconsideração teológica que Paulo elaborou em consequência de sua experiência na estrada para Damasco é um tanto diferente. Era menos urna experiência pessoal de aceitação por Deus (apesar de ser um pecador) que levara à conclusão de que os gentios podiam compartilhar diretamente da mesma experiência para si, através da fé (e Unicamente através da fé). Era mais a convicção de que Deus o estava chamando para cumprir a vocação de Israel (de ser urna luz para as nações), que levou à conclusão (para ele, cristalizada no incidente de Antioquia em Gl 2.11-16) de que isto podia ser realizado somente se a justificação fosse através da fé (e unicamente através dela).

  Eu procurei oferecer a minha própria contribuição para esse debate em outro lugar e não quero me repetir aqui desnecessariamente. Neste ponto, deve ser suficiente dizer que minha ênfase cai sobre a segunda das duas aproximações acima esboçadas, principalmente porque me parece haver expressões claras no resumo que o próprio Paulo faz do significado do encontro na estrada para Damasco (particularmente G1 1.13-16) que têm sido demasiadamente ignoradas pela visão mais tradicional. Ao mesmo tempo, não vejo motivo para discutir - de fato, desejo fortemente afirmá-lo de minha própria parte - aquilo que a ênfase mais tradicional realça e sublinha como uma afirmativa teológica de importância fundamental, expressa particularmente em Rm 4.4-5, a saber, que a justificação pela fé está no centro do evangelho e da teologia de Paulo. O que está em jogo, em vez disso, no debate atual sobre o assunto, é garantir uma compreensão apropriadamente coesa e integrada do ensinamento de Paulo e, no presente caso, esclarecer o máximo possível quanto e como a conversão de Paulo contribuiu com esse elemento fundamental de sua fé.

  Eu procurarei no que segue esboçar no coração da teologia paulina da justificação a pergunta sobre o porquê da controvérsia, pensando evidentemente em como ela era, e como a antítese particular entre a "justificação de fé, não de obras" remete à sua conversão.



Livro: A Nova Perspectiva sobre Paulo
           Autor: James D. G. Dunn
           Editora: Paulus

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