A LITERATURA HISTÓRICA DO VELHO TESTAMENTO
Quando se fala da literatura histórica do Velho Testamento, supomos tratar-se dos livros que vão do Gênesis ao livro de Ester. Mas isso não quer dizer, que não haja textos de natureza histórica nos restantes livros bíblicos. Citem-se, por exemplo, o prólogo e o epílogo do livro de Jó, os fragmentos históricos dalguns livros proféticos como os capítulos 36-39 de Isaías, vários capítulos do livro de Jeremias e a primeira metade do livro de Daniel. Limitar-nos-emos, porém, a estudar os livros de Gênesis a Ester, vulgarmente considerados, dum modo especial como livros históricos.
I. O PENTATEUCO
"Pentateuco" é uma palavra grega que significa "conjunto de cinco livros"; e emprega-se, normalmente, como sinônimo do grupo dos cinco primeiros livros do Velho Testamento. Na Bíblia hebraica estes livros formavam um grupo à parte intitulado "a Lei", porque apresentam um caráter legal, embora tenham um número considerável de narrativas históricas. Por várias vezes se emprega este termo no Novo Testamento, referindo-se àqueles cinco livros (cfr. #Mt 12.5; #Jo 1.45; #At 13.15; #At 24.14; #1Co 14.34). Foi assim que deliberamos analisar primeiro o Pentateuco separadamente, e em seguida os outros livros históricos.
a) A revelação fundamental
É sabido que o Pentateuco nos fornece os principais fatos da revelação divina. Precisamente nos primeiros capítulos é que ficamos a saber que foi Deus o Criador do mundo onde vivemos. Segue-se a descrição da queda do homem, revolta da criatura contra o Criador, por meio da qual a humanidade, e com ela toda a criação, teve de suportar a maldição divina. Vem depois a promessa do Salvador ("a Semente da Mulher" em #Gn 3.15), com a indicação das circunstâncias em que este Salvador aparecerá no mundo. Primeiramente há um quadro geral do universo, em que o pecado leva o Senhor a destruir o homem pelo dilúvio, fazendo-o desaparecer da face da terra. Depois desse dilúvio, de que só escapou a família de Noé, surge um período de apostasia, cujo cúmulo leva o homem a construir uma torre capaz de enfrentar as nuvens e o próprio Deus (#Gn 11.4).
Deus, porém, na Sua bondade infinita, propõe-Se preparar um povo, de que há de sair o Salvador. De Ur dos Caldeus chama Abraão, um dos descendentes de Sem (#Gn 11.26), e através dele promete a bênção a todas as famílias da terra (#Gn 12.3). Os filhos de Jacó emigram para o Egito, onde após anos de tranqüila estada, se transformam numa grande nação. Surge a escravidão e uma tentativa para restringir o progresso desse povo, mas o Senhor liberta-o e com ele realiza uma aliança no Monte Sinai. É a Lei mosaica, que lentamente vai sendo explicada. Mas a libertação do Egito, por meio de Moisés, não passa dum símbolo da obra redentora de Cristo (cfr. #Jo 1.17; #Cl 2.17). Narrações que não podem ser tomadas como mera representação dos acontecimentos históricos, pelo seu significado espiritual, que podemos e devemos atribuir-lhes.
b) A teoria dos documentos
Há muitos autores que negam categoricamente a origem mosaica destes primeiros livros, dividindo o Pentateuco em diferentes "fontes" ou "documentos", e admitindo que esses livros só começaram a aparecer unidos no tempo do escriba Esdras. Era esta a teoria corrente ainda no fim do século passado. A partir daí, todavia, sérias dúvidas se têm levantado contra a chamada "teoria dos documentos", dando origem a divergência de opiniões. Como ainda se segue esta teoria em muitas escolas, será útil fazermos alusão aos principais argumentos aduzidos, e bem assim provar como são insustentáveis.
1) OS NOMES DIVINOS. Logo de início se reparou na variedade dos nomes atribuídos a Deus. Daí o falar-se em fontes "jeovaístas" e "eloístas" conforme Deus é denominado Jeová ou ’ Elohim. Mas temos observado que o Corão dos maometanos apresenta um caso idêntico. Uns textos falam de "Allah" (heb. ’ Elohim) e outros de "Rab" (heb. Yahweh = Senhor). Quanto à reunião dos dois termos Yahweh-Elohim, que só aparece no Gênesis (#Gn 2.4-3.24) e no Êxodo (#Êx 9.30), não é caso para supor tratar-se dum autor diferente. Em conclusão, os partidários desta teoria não podem sustentar a infalibilidade dos seus argumentos, baseando-se apenas nos diferentes nomes de Deus.
2) LINGUAGEM E ESTILO. Fala-se ainda em diferenças de linguagem, de estilo, e até do aspecto teológico, se bem que tais maneiras de pensar, sendo meramente subjetivas, não são de grande importância. É de notar, que um dos defensores da "teoria dos documentos", após um exame rigoroso, chegou à conclusão de que são pequeníssimas as diferenças lingüísticas das várias fontes e acabou por admitir que se trata de ligeiras diferenças, meramente acidentais.
3) AS NARRAÇÕES EM DUPLICADO. De maior importância é o fato de o mesmo acontecimento ser, por vezes, narrado de duas maneiras. Seria o caso da criação, do dilúvio, da esposa de Abraão, da ida de José para o Egito, das dez pragas, e ainda da rebelião de Coré, Datã e Abirã. Não raro as descrições são apresentadas em separado (por exemplo, a história da criação); noutros casos afirma-se que as descrições foram habilmente reunidas numa só história por um redator, (por exemplo, a história de José). Em nenhum destes casos, todavia, há realmente uma narração em duplicado do mesmo acontecimento.
Quanto à história da criação, convém distinguir entre a revelação da obra criadora de Deus no primeiro capítulo do Gênesis e a história do mundo criado do capítulo imediato. Quanto ao dilúvio, que é um dos casos mais discutidos, é uso afirmar-se, que primeiramente Noé foi incumbido de introduzir na arca um casal de cada espécie de animais e, mais tarde, sete de cada espécie "pura" e dois de cada espécie "impura". Mas, por que considerar este exemplo um caso de contradição? O fato de ser aconselhado a tomar um casal de cada espécie, o que não passava duma regra geral, porventura poderá impedir que se sigam outras instruções relativas aos animais "impuros"? No caso da esposa de Abraão, a quem o marido negou, não parece tratar-se duma narração em duplicado do mesmo acontecimento (ou até em triplicado, se considerarmos a intervenção de Isaque no #Gn 26.6-11), mas sim de vários acontecimentos. Quanto à resposta de Abraão em #Gn 20.13 é possível que se trate dum ardil empregado, não só por Abraão, mas também por Isaque.
É freqüente imaginar-se, também, duas versões diferentes da narração relativa à ida de José para o Egito. Segundo uma, José foi vendido pelos irmãos a uma caravana de ismaelitas; segundo outra, eram midianitas os que o levaram para o Egito. Mas quem não vê que se trata duma falsa interpretação do texto bíblico? O leitor imparcial facilmente descobrirá, que mercadores midianitas em trânsito retiraram José do poço onde os irmãos o tinham lançado, e esses é que o venderam aos ismaelitas, que por sua vez o levaram para o Egito. Assim, foram eles que realizaram o que os irmãos tinham em vista.
No que respeita à história das dez pragas do Egito, os partidários da "teoria dos documentos" também não deixam de encontrar vestígios de descrições em duplicado bem vincadas por uma série de diferenças sistemáticas, mas que, na realidade, não passam de ligeiras variantes de linguagem, se atendermos, sobretudo, aos traços característicos que se encontram tão intimamente ligados. No caso da rebelião de Coré, duas novas versões se apresentam: uma, referente à oposição dos leigos contra a autoridade civil de Moisés, chefiada por Datã e Abirã; a outra, aludindo à discórdia que surgiu entre a tribo de Levi e as outras tribos, sob o comando de Coré. Trata-se, todavia, duma suposição totalmente contrária ao texto, pois não só encontramos os três conspiradores atuando em conjunto em #Nm 16.1-3, onde se diz que se opuseram à autoridade de Moisés e de Arão, mas também os vemos juntos nos versículos #Nm 16.24,27. É de notar, no entanto, como no que se refere ao castigo que sofreram, ou seja, de serem tragados pela terra, o texto apenas fala de Coré (cfr. #Nm 16.32), sem mencionar o destino que tiveram os restantes conspiradores.
4) A DISCORDÂNCIA ACERCA DE DISPOSIÇÕES LEGAIS. Como explicar, por exemplo, que #Nm 35.13 e segs. se refira a seis cidades de refúgio, enquanto em #Dt 19.2,7 não vão além de três? Assim interrogam os nossos adversários, não vendo que no primeiro caso as cidades se situam, três na terra de Canaã, e três na Transjordânia. E como Moisés já tinha indicado três cidades na Transjordânia (#Dt 4.41-43), não admira que ordenasse a separação de outras três na terra de Canaã. É certo, que em face de #Dt 19.8 e segs., podem supor-se outras três cidades nas fronteiras de Canaã, mas isto em nada afeta o nosso caso, a admitir a manifesta discordância de textos.
E o caso das leis relativas às grandes festas? Em conformidade com #Êx 23.14 e segs.; #Êx 34.22 e segs.; #Dt 16.16 eram três as grandes festas de Israel: a dos pães asmos, a das semanas e a das colheitas. Mas o #Lv 23.27 e segs. menciona ainda o dia da expiação, o que leva a supor que o código levítico é de data posterior. Que dizer? Simplesmente que se trata dum argumento sem consistência, se lembrarmos que as leis do Êxodo e do Deuteronômio apenas lembram a obrigação de todo o israelita do sexo masculino aparecer diante do Senhor três vezes por ano. A nada é obrigado, porém, no dia da expiação. E são estas as ligeiras diferenças.
5) SACERDOTES E LEVITAS. De maior importância a diferença nítida entre o Deuteronômio e o chamado "Código Sacerdotal" no que se relaciona com os sacerdotes e os levitas. Quem segue a "teoria dos documentos" afirma que o Deuteronômio não faz qualquer distinção entre estas duas categorias, distinção essa que só mais tarde se verificou. Não é, contudo, o que se deduz de #Dt 18, pois nos versículos #Dt 18.3-5 fala-se do "direito dos sacerdotes a receber do povo", e de #Dt 18.6-8 continua: "e quando vier um levita dalguma das tuas portas...".
c) A Lei mosaica
Os partidários da "teoria dos documentos" são de opinião que o Deuteronômio foi escrito no reinado de Josias. Mas, se folhearmos cuidadosamente aquele livro, ficaremos surpreendidos por verificar que o narrador, sem uma única exceção, supõe que o povo de Israel ainda não vive em Canaã. Acentua, por exemplo, em #Dt 11.2-7 que se dirige aos que pessoalmente foram testemunhas das maravilhas do Senhor no Egito, não só no Êxodo, como na travessia do deserto. Várias são também as alusões indiretas ao período mosaico: todos os acontecimentos históricos mencionados são anteriores à morte de Moisés; as descrições de Canaã como "terra, cujas pedras são ferro, e de cujos montes tu cavarás o cobre" (#Dt 8.9), só se compreendem antes de Israel entrar na Terra Santa, visto que o povo nunca se preocupara com os tesouros que essa terra escondia. Além disso, o Deuteronômio contém determinações cuja prática seria impossível no tempo do rei Josias. Recordem-se, por exemplo, as medidas drásticas contra a idolatria e falsas profecias (cfr. #Dt 13; 15). Como pensar em tais determinações numa época em que o culto dos ídolos alastrava assustadoramente em Israel, a par do grande número de falsos profetas a exercer poderosa influência nos espíritos?
Ao examinarmos atentamente o corpo de leis do Pentateuco, não é difícil descobrirmos uma séria de normas acidentais de fundo real. É o caso das freqüentes alusões aos animais domésticos, como por exemplo, ao "boi" e ao "burro" no décimo mandamento do Êxodo, enquanto não se fazem outras referências análogas, como aos "campos" ou à vida agrícola em geral. Mas repare-se como já se alude ao "campo" na transcrição que o Deuteronômio apresenta do Decálogo. Tudo a indicar que Israel estava prestes a entrar em Canaã.
Entre os materiais empregados na construção do tabernáculo, encontra-se o "linho fino", que era um produto exclusivo do Egito; "pêlos de cabra", utilizados apenas pelos nômades para tecerem as coberturas pretas das tendas; "peles de texugo", provavelmente peles duma vaca marinha do Mar Vermelho, que os habitantes da Península do Sinai utilizavam na confecção de sandálias; e finalmente, "madeira de shittim", uma espécie de acácia do Egito e da Península do Sinai. (Repare-se, que no caso do Templo de Salomão não foi utilizada aquela madeira de "shittim", mas apenas madeira de cedro, abeto ou oliveira).
Quanto aos materiais empregados na confecção do incenso, citam-se as "ônicas", que eram uma espécie de caramujo freqüente no Mar Vermelho, e cuja concha, depois de queimada, produzia um aroma agudo e penetrante. São numerosas as referências a pedras preciosas não existentes na Palestina, mas muitas delas encontram-se com freqüência no Egito, ou nas vizinhanças do Mar Vermelho e da Península do Sinai. O "linho entrelaçado" para as cortinas do tabernáculo lembra-nos ainda o Egito e os seus hábeis artífices.
Quanto às listas dos animais "puros" e "impuros", é de notar que, embora muitos se encontrem tanto na Palestina como no Egito e na Península do Sinai, todavia abundam com mais freqüência no Egito. O "porco", por exemplo, é próprio das regiões úmidas; o "milhano" aparece mais na zona do Nilo e nas margens do Mar Vermelho; o "pelicano" freqüenta os lagos egípcios; por fim o "pavoncino" ou "poupa" é sem dúvida uma ave essencialmente africana. No que se refere à "cabra montês" ou "camurça" do #Dt 14.5, e que não aparece na lista do #Lv 11, parece tratar-se do "argali" oriental, espécie de "carneiro selvagem" proveniente da Ásia Menor, da Transcancásia ou da Pérsia, mas nunca do Egito. Para explicar a presença deste animal no Código Deuteronômico, basta lembrar que este livro foi publicado na terra de Moabe.
Em conclusão, todas as práticas de idolatria mencionadas na Lei só se observavam na Fenícia e em Canaã. Deuses de metal fundido, imagens esculpidas, colunas sagradas, o terrível costume de fazer passar as crianças pelo fogo, são práticas da religião de Canaã, que recentes escavações vieram confirmar. Quanto ao costume de sacrificar aos demônios (#Lv 17.7), trata-se duma velha superstição, que supunha o deserto infestado por legiões de demônios transformados em bodes.
d) O autor e a data
Muito mais se poderia dizer; mas o que ficou exposto é suficiente para demonstrar, que a Lei não supõe diferentes épocas da história de Israel, mas uma só: a de Moisés. É a própria Bíblia a reclamá-lo. Por várias vezes Deus disse a Moisés: "Assim dirás aos filhos de Israel", mas não em sentido figurado, como noutros códigos antigos do Oriente (por exemplo, no famoso código de Hamurábi). O Senhor entregou realmente ao Seu povo, na pessoa de Moisés a Lei, que deveria ser escrita (cfr. #Êx 24.4; #Êx 34.27; #Dt 31.9,24), abrangendo a coleção completa de todas as ordens emanadas do Senhor. É natural que o legislador queira que as suas leis sejam escritas. Moisés, porém, foi mais longe e não se limitou a escrever as leis. No #Êx 17.14, o Senhor ordena-lhe: "Escreve isto para memória num livro, e relata-o aos ouvidos de Josué". De que se tratava? De registar o crime de Amaleque e o castigo que Deus lhe infligira, juntamente com o acontecimento histórico que deu origem àquele crime, ou seja, o assalto de Amaleque às posições dos filhos de Israel. Quanto ao itinerário de #Nm 33.2, é muito possível que Moisés não só anotasse as diferentes localidades por onde os israelitas passaram, mas também os principais acontecimentos que tiveram lugar durante a viagem. Tendo sido educado na corte egípcia, Moisés sabia muito bem que os acontecimentos importantes devem registar-se dia a dia, tal como faziam os escribas do Egito. Fala-se ainda dum "cântico" de Moisés, que escrevera e ensinara aos filhos de Israel (#Dt 31.22) e que vem registrado em #Dt 32.1-43.
No que respeita à história pré-mosaica, não há dúvida que o autor teve de recorrer a documentos escritos já existentes, a servirem de fontes às diferentes genealogias, como a que vai de Adão a Noé: "Este é o livro das gerações de Adão" (#Gn 5). O uso da palavra "livro" implica, sem dúvida, que esta genealogia deve ter sido extraída dum documento escrito, cujo título podia ser aquele e que passou a ser introduzido no Gênesis. #Gn 14 deve basear-se também num antigo documento. O fato de Abraão ser cognominado o "hebreu", dá a entender que o documento deve ter uma origem não-israelítica. Também não é provável, que até ao tempo de Moisés toda a história da humanidade antidiluviana e dos patriarcas se tenha mantido apenas através da tradição oral. O mais certo é que os relatos desses tempos primitivos fizeram parte dos tesouros que os israelitas levaram consigo quando saíram do Egito.
Em mais do que um caso há vestígios de ligeiras alterações ao texto original, como na descrição da morte de Moisés e na introdução de nomes de localidades modernas para auxiliar o leitor a identificar as do texto sagrado (cfr. "Dã" em #Gn 14.14 e "Ramessés" em #Êx 1.11).
Tomando em consideração estes fatos, apresentam-se duas hipóteses sobre a questão da autoria do Pentateuco. Para uns, é Moisés o seu autor, embora tenham de admitir-se leves modificações na transcrição ou na tradução, e até um ou dois aditamentos, como no caso da morte de Moisés, aliás evidente. Os cinco livros foram, pois, escritos e coordenados pelo próprio Moisés. Outros admitem um compilador muito posterior, talvez dos últimos tempos da monarquia, que se aproveitou da literatura mosaica e doutros materiais anteriores. Seja como for, uma coisa é certa: é que, em qualquer dos casos, há que admitir a inspiração divina nestes livros, que fazem parte da Bíblia e constituem para nós uma mensagem de Deus.
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