quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A relação entre João Calvino e o desenvolvimento das ciências modernas


O mundo ocidental vive um grande avanço científico. Não é necessário muito esforço para percebermos o quanto estamos ligados e somos influenciados pelo avanço nas áreas da física, da química, da biologia, da medicina, dentre outras.

As origens do moderno avanço das ciências naturais são um tanto complexas e controversas. Há, atualmente, teorias que se esforçam para apresentar um único fator que controla todo esse desenvolvimento científico. Todavia, tais teorias são tomadas pela grande maioria dos historiadores como ambiciosas e inconvincentes. Como afirmou Alister McGrath, teólogo e apologista inglês, tentar argumentar que a origem do grande desenvolvimento das ciências reside em apenas um fator ou pessoa é exagero e desonesto com a história.

Está claro que muitos são os fatores que contribuíram para o avanço das ciências modernas. Dentre eles está o fator religioso que, inquestionavelmente, esteve envolvido. E é dentro desse fator que João Calvino (1509-1564) se destaca tanto removendo obstáculos “religiosos” que impediam o avanço das ciências naturais quanto encorajando o estudo científico da natureza.

Sem dúvida, muitas são as origens do moderno avanço científico. E muitos estão plenamente convencidos de que Calvino teve um papel fundamental para que chegássemos àquilo que hoje se vê, ainda que, ele mesmo, não tenha atuado em nenhuma ciência natural.

Portanto, o foco deste artigo é analisar a estreita e intrínseca relação entre João Calvino e o desenvolvimento das ciências modernas.


CALVINO E O ENCORAJAMENTO AO ESTUDO CIENTÍFICO DA NATUREZA
UM ERRO HISTÓRICO
Como já dissemos, João Calvino foi um dos grandes fatores que ajudaram no desenvolvimento das ciências naturais. Além de remover grande parte dos obstáculos que impediam tal progresso, Calvino e seus seguidores foram grandes encorajadores do estudo científico sobre a natureza.

A imagem que hoje se tem de João Calvino infelizmente não corresponde a muitos dos fatos. A imagem de um homem que não dava margem a nada que não fosse intolerância e biblicismo tem sido passada de maneira pouco cuidadosa.

O professor R. Hooykaas, em sua obra A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, diz que o preconceito cegou os historiógrafos.1 É comumente aceito entre eruditos historiadores, como o professor R. Hooykaas da Universidade de Utrecht e Alister McGrath da Universidade de Oxford, que o polêmico livro de Andrew Dickson White, A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom (Londres, 1896) é responsável por boa parte da controvérsia atual.

McGrath, no prefácio de seu livro A life of John Calvin, diz que “nos últimos cem anos, a atitude de Calvino com relação à teoria heliocêntrica do sistema solar de Copérnico2 tem sido objeto de ridículo”.3 Andrew Dickson White, citado acima, escreveu:

Calvino assumiu a liderança em seu Comentário de Gênesis, condenando todos os que asseveram que a Terra não está no centro do universo. Ele decidia o assunto com sua habitual referência ao primeiro verso do Salmo 93, perguntando: ‘Quem ousará colocar a autoridade de Copérnico acima da do Espírito Santo?’4
White, por sua vez, copiou tal equívoco de declarações fictícias dos escritos de Frederick William Farrar5 (1831-1903), deão anglicano de Canterbury. A declaração de Farrar, repetida por White, tem sido amplamente repetida em livros, artigos e ensaios que tratam do tema “religião e ciência”, como Bertrand Russell em sua History of Western Philosophy.6  Apesar de essa lenda ser tão bem aceita, ela não passa de ficção, uma vez que João Calvino nunca mencionou tais palavras, nem jamais citou Copérnico em seus escritos conhecidos.

É um fato triste da história que Calvino tenha sido adulterado e distorcido tão grosseiramente. É lamentável que permaneça aceito que Calvino, e consequentemente o calvinismo, tenham sido hostis contra o desenvolvimento das ciências naturais. De fato, a história é bem diferente, como avaliaremos a seguir.


A HISTÓRIA NÃO CONTADA
O fato é que Calvino encorajou amplamente o estudo científico da natureza em seus dias. Não só ele, mas também seus discípulos mantiveram a mesma atitude nos anos que seguem à morte do reformador genebrino. Em suas Institutas, Calvino diz:

Inumeráveis são, tanto no céu quanto na terra, as evidências que lhe atestam a mirífica sabedoria. Não apenas aquelas coisas mais recônditas, a cuja penetrante observação se destinam a astronomia, a medicina e toda a ciência natural, senão também aquelas que saltam à vista a qualquer um, ainda o mais inculto e ignorante, de sorte que nem mesmo podem abrir os olhos e já se veem forçados a ser-lhes testemunhas.7
Calvino, portanto, aprova e confia, em certa medida, tanto na astronomia quanto na medicina. McGrath afirma que, de fato, Calvino confessa nessas palavras das Institutas certo tipo de ciúmes daquelas ciências naturais8 por serem capazes de provar de modo mais profundo (no mundo natural) o método e a regularidade da criação, além da sabedoria de seu Criador.

Sustenta-se, portanto, que Calvino deu um impulso religioso fundamental para a o desenvolvimento das ciências. Em seus dias, tais legitimações sobre a investigação da medicina e da astronomia desanuviou o caminho para o avanço científico.

É possível ver a influência de Calvino sobre seus discípulos no que tange ao encorajamento à pesquisa científica. A Confissão de Fé Belga (que, segundo McGrath,9 exerceu particular influência nos Países Baixos) foi grandemente influenciada pela teologia de Calvino. E foi nessa região, onde ela exerceu maior influência, que, coincidência ou não, produziu-se um número notável de físicos e botânicos. Nessa confissão de fé, no artigo 2 (Como conhecemos a Deus), lê-se assim:

... visto que o mundo, perante nossos olhos, é como um livro formoso, em que todas as criaturas, grandes e pequenas, servem de letras que nos fazem contemplar ‘os atributos invisíveis de Deus’, isto é, ‘o seu eterno poder e a sua divindade’, como diz o apóstolo Paulo em Romanos 1.20: Todos estes atributos são suficientes para convencer os homens e torná-los indesculpáveis.10
Em outras palavras, Deus pode ser conhecido através de um estudo detalhado e minucioso de sua criação. E é impressionante, como já fora posto acima, a influência que esta confissão de fé teve sobre físicos e botânicos da região dos Países Baixos.

Em outras duas passagens das Institutas, Calvino aprofunda um pouco mais a questão. Ele mostra como toda a criação não passa de um grande teatro que nos serve para revelar a glória de Deus:

Portanto, por mais que ao homem, com sério propósito, convenha volver os olhos a considerar as obras de Deus, uma vez que foi colocado neste esplendíssimo teatro para que fosse seu espectador, todavia, para que fruísse maior proveito, convém-lhe, sobretudo, inclinar os ouvidos à Palavra.11

Entrementes, não hesitemos em colher piedoso deleite das obras de Deus manifestas e patentes neste formosíssimo teatro. Pois, como o dissemos em outro lugar, embora não seja a evidência primordial à fé, contudo na ordem da natureza esta é a primeira: para onde quer que volvamos os olhos em derredor, devemos ter em mente que todas as coisas que nossos olhos divisam são obras de Deus, e ao mesmo tempo devemos refletir, em piedosa consideração, a que fim foram por Deus criadas.12
Nestes textos, Calvino claramente sugere que toda a natureza se posta ante os seres humanos como um formosíssimo teatro, ou, um teatro da glória de Deus. A humanidade é quem aprecia esse teatro, e o estuda também.

O professor Alister McGrath, da Universidade de Oxford, afirma que estas ideias foram tomadas com grande entusiasmo pela Royal Society, a organização mais importante devotada ao avanço da pesquisa e ensino científicos na Inglaterra. Segundo McGrath, muitos de seus primeiros membros foram admiradores de João Calvino, familiarizados com seus escritos e sua relevância para os campos de estudo daqueles.13

Interessante como o próprio Sir Isaac Newton (1643-1727), cientista inglês, mais reconhecido como físico e matemático, embora tenha sido também astrônomo, alquimista, filósofo natural e teólogo, em sua correspondência com Richard Bentley (1662-1742) escreva sobre sua alegria em poder demonstrar evidência de design na regularidade do universo em sua obra de 1687, Principia Mathematica. Segundo McGrath, há nessas cartas claras alusões à referência de Calvino ao universo como “teatro da glória de Deus” onde todos nós podemos, como audiência, apreciá-lo e aprender dele.14

O que se percebe lendo Calvino e aqueles que por ele foram influenciados é que, o estudo de toda a criação, seja por meio da medicina, ou da astronomia, ou da botânica, etc., conduz a humanidade a um aumento consciente da sabedoria daquele que criou todas as coisas visíveis e invisíveis.

Na visão do Dr. Abraham Kuyper (1837-1920),15 homem profundamente familiarizado com os escritos de João Calvino, o calvinismo não pôde fazer outra coisa na história ‘senão encorajar o amor pela ciência’.16 Portanto, Calvino não só encorajou e legitimou a busca pelo conhecimento da sabedoria do Criador através das pesquisas científicas feitas pelos estudiosos das ciências naturais, como também eliminou muitos obstáculos dentro da própria religião que obstruíam tal avanço.


CALVINO E A REMOÇÃO DOS OBSTÁCULOS QUE
IMPEDIAM O DESENVOLVIMENTO DAS CIÊNCIAS NATURAIS
A “GRAÇA COMUM” E A LUZ DA CIÊNCIA SOBRE OS PAGÃOS
Indubitavelmente, além de encorajar o desenvolvimento das ciências naturais, João Calvino buscou remover muitos obstáculos que impediam o avanço das pesquisas culturais em seus dias. Seu conceito a respeito da graça comum ajudou a esclarecer muitas coisas além de remover outras que impediam o avanço do conhecimento.

Para ele, o Espírito Santo exercia influência comum sobre os homens em geral. A isso ele chamava de graça comum. Diante de eleitos e réprobos, Deus exercia uma atitude favorável que se observa nas concessões necessária à sobrevivência (chuva, sol, alimento, abrigo, etc.) a todos. Assim ele diz nas Institutas:

Quantas vezes, pois, entramos em contato com escritores profanos, somos advertidos por essa luz da verdade que neles esplende admirável, de que a mente do homem, quanto possível decaída e pervertida de sua integridade, no entanto é ainda agora vestida e adornada de excelentes dons divinos. Se reputarmos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade, a própria verdade, onde quer que ela apareça, não a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus.17
João Calvino foi um humanista extremamente talentoso e realista. Por conta disso, o professor R. Hooykaas argumenta que Calvino jamais diria que a Queda teria “levado o homem a uma total depravação no campo científico”.18 Ao contrário, Calvino via a graça comum de Deus sobre os pagãos manifestando-se no fato de que Deus concede dons a eles e assim os capacita a encontrar a verdade em suas pesquisas e escritos científicos.

Segundo o professor Hermisten M. P. da Costa, “Calvino dispunha de uma visão ampla da cultura, entendendo que Deus é Senhor de todas as coisas; por isso, toda verdade é verdade de Deus”.19 Para Costa, era sobre o conceito da graça comum, ou graça geral, que essa perspectiva de Deus sobre os pagãos se ampara.

Em seu comentário do livro de Gênesis, Calvino expõe claramente a graça comum. Ao mostrar Deus dando dons à amaldiçoada descendência de Caim (comentário de Gn 4), Calvino diz: “verdadeiramente é maravilhoso que esta raça que tinha caído profundamente de sua integridade superaria o resto da posteridade de Adão com raros dons”.20 O texto que Calvino comenta é o seguinte:

E Ada deu à luz a Jabal; este foi o pai dos que habitam em tendas e possuem gado. O nome do seu irmão era Jubal; este foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta. A Zila também nasceu um filho, Tubal-Caim, fabricante de todo instrumento cortante de cobre e de ferro; e a irmã de Tubal-Caim foi Naama. (Gn 4.20-22)21
De modo que, para Calvino, foi a graça (comum) de Deus que permitiu a invenção das artes e de outras coisas úteis para a vida presente. Contudo, embora Calvino visse a graça de Deus sobre pagãos sendo derramada com a finalidade de que estes tivessem habilidades para criar e também para descobrir cientificamente detalhes da criação, de longe o Livro Sagrado preocupava-se em ser um repositório de informações científicas. Hooykaas cita o comentário de Calvino ao texto de Gênesis 1.15: “A Bíblia era, portanto, um ‘livro para leigos’”; “aquele que desejasse aprender astronomia, ou outras artes recônditas, que fosse a outros lugares”.22

Com isso em mente, Calvino desafiou a muitos dentro da própria igreja que tinham a Bíblia como um verdadeiro livro-texto sobre ciências. Ele removeu tal ideia provando ser a Bíblia um livro que não se preocupava com ciências naturais, mas com o conhecimento de Jesus Cristo.


A BÍBLIA NÃO É UM REPOSITÓRIO DE CIÊNCIAS NATURAIS
Quando afirmamos que João Calvino contribuiu grandemente para o desenvolvimento das ciências modernas, assim fazemos pelo fato de ele ter lidado de maneira honesta com o literalismo bíblico. Até então ensinava-se a olhar para as Escrituras como um livro científico (além de religioso). Cria-se que a Bíblia tratava de detalhes da estrutura do universo, de modo que homens como Copérnico e Galileu, com suas teorias heliocêntricas, tiveram, em princípio, grandes problemas.

A Igreja Católica Apostólica Romana ainda controlava a produção cultural e científica e defendia a teoria do geocentrismo (a Terra como centro do Universo). Galileu Galilei foi condenado pelo Santo Ofício por defender o heliocentrismo. Pouco antes de ser queimado na fogueira da Inquisição, negou essa teoria diante do tribunal tão somente para livrar-se de ser queimado, porém nunca deixou de acreditar nela nem de pesquisá-la.

O grande problema de muitos que hoje lidam com o tema “religião e ciência” ainda reside no fato de querer encontrar na Bíblia um verdadeiro repositório de livros-texto sobre astronomia, geografia ou biologia.23 A ênfase de João Calvino era de que a Bíblia trata fundamentalmente do conhecimento de Jesus Cristo.

Alister McGrath comenta as palavras de Calvino no prefácio da tradução do Novo Testamento de Pierre Olivétan (1543), onde, segundo McGrath, Calvino remove o conceito, até então normal, de a Bíblia ser um repositório científico. Calvino disse em tal prefácio:

O ponto principal das Escrituras é trazer-nos a um conhecimento de Jesus Cristo... As Escrituras nos proveem com um espetáculo, através do qual nós podemos ver o mundo como a criação de Deus e sua autoexpressão; elas jamais pretenderam prover-nos com um repositório infalível de informações astronômicas e médicas.24
É deste modo que Calvino lança luz sobre uma opção melhor de interpretação das Escrituras. Não mais olhar para a Bíblia como um livro que se preocupa com a infalibilidade em assuntos geográficos, físicos, químicos, botânicos, astronômicos, dentre outros, mas como um livro que se preocupa em aumentar nosso conhecimento de quem é Jesus Cristo, o Deus-Filho. A Bíblia, na visão de João Calvino, quando cita algo relacionado hoje ao estudo das ciências naturais, o cita de forma acomodativa, dentro dos limites do conhecimento de então. É a isso que se chama de Teoria da Acomodação.


A TEORIA DA ACOMODAÇÃO
Calvino insistiu que nem tudo o que a Bíblia diz sobre Deus ou sobre o mundo deve ser tomado literalmente. De acordo com McGrath, Calvino desenvolveu uma sofisticada teoria relacionada sempre com o termo “acomodação”.25 A palavra “acomodação” aqui significa “ajustar ou adaptar a fim de encontrar as necessidades da situação e da habilidade humana para compreendê-lo”. Alister McGrath diz que “Deus pinta um quadro de si mesmo que nós somos capazes de entender”.26
Em outra obra, McGrath diz que a teoria da acomodação, de Calvino, resume-se em:

Deus, ao se revelar a nós, acomodou-se aos nossos níveis de entendimento e às nossas preferências naturais por meios ilustrativos de compreendê-lo. Deus se revela, não como ele é em si mesmo, mas em formas adaptadas à nossa capacidade humana. Assim, a Bíblia fala de Deus tendo braços, boca, e assim por diante – mas essas são apenas metáforas vivas e memoráveis, apropriadas de maneira ideal às nossas habilidades intelectuais. Deus se revela de formas adequadas, convenientes às habilidades e situações daqueles para quem a revelação foi originalmente dada.27
Nessas palavras, McGrath sintetiza o pensamento de Calvino sobre a maneira como Deus escolheu para se revelar aos homens: uma linguagem acomodada à ciência de então. Não uma linguagem cientificamente exata, mas, como já dito, adaptada.

Ao analisarmos outras fontes percebemos o quanto isso influenciou cientistas dos séculos XVI e XVII. O professor Hooykaas, em A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, argumenta como a teoria da acomodação, de Calvino, influenciou seguidores de Copérnico nos países protestantes. Tais homens eram astrônomos, preocupados com o desenvolvimento da teoria do heliocentrismo, condenada pela igreja romana de então.

O escritor inglês Edward Wright (1558?-1615), ao prefaciar De Magnete, de William Gilbert (1600), utilizou argumentos que vêm diretamente de João Calvino. Naquele prefácio, Wright defende a teoria heliocêntrica afirmando que ela, ao contrário do que se dizia em meios eclesiásticos, não se chocava em ponto algum com as Escrituras Sagradas. No já referido texto, Wright usa a teoria da acomodação, de Calvino, para argumentar contra os literalistas bíblicos que levantavam objeções contra sua teoria. Seu argumento, segundo Hooykaas, foi dizer que “nem Moisés, nem os profetas, tiveram a intenção de divulgar sutilezas físicas e matemáticas e, portanto, não entraram em minúcias supérfluas”.28  Wright escreveu: “Moisés acomodou-se ao entendimento e à maneira de falar das pessoas comuns, como fazem as amas com as criancinhas”.29  Essa é a mesma figura usada por João Calvino ao expor o versículo 7 do salmo 136. Lá, Calvino diz que:

O Espírito Santo não possuía intenção alguma de ensinar astronomia... O Espírito Santo escolhe se adaptar e se comunicar conosco como que balbuciando, ao invés de bloquear o caminho do conhecimento às pessoas rudes e incultas.30
Tanto João Calvino como seus discípulos defenderam a teoria da acomodação que, usando de linguagem simples para falar a um povo simples, permitiu-se a alguns erros vulgares.31 Tais erros foram permitidos com o fim de o Espírito transmitir sua mensagem espiritual para o povo. É a isso que Calvino chama de balbuciar do Espírito.

Wright foi, sem dúvida alguma, influenciado por Calvino. Por isso, escreve de modo tão semelhante a ele quando trata do balbuciar do Espírito. Ninguém é capaz de negar o quanto João Calvino influenciou pessoas em seus dias com a teoria da acomodação. Sua mudança de foco na interpretação da Bíblia Sagrada incentivou grande número de cientistas à pesquisa, sobretudo nos países protestantes.

Outro astrônomo famoso, também calvinista convicto, foi Philips van Lansbergen (1561-1632). Lansbergen foi, também, um ministro protestante. Ele foi ‘o mais zeloso propagador do copernicanismo nos Países Baixos’.32 Hooykaas, citando um comentário do próprio van Lansbergen da epístola de Paulo a Timóteo em 2Tm 3.16, escreve que a Bíblia não fala sobre assuntos astronômicos:

...segundo a situação real, mas segundo as aparências... A Escritura foi-nos outorgada por inspiração de Deus, e deve ser usada para doutrina, exprobração, correção, e para o exercício da probidade, mas não é própria para o ensino da geometria e da astronomia.33
Outro grande nome na história da ciência é o de Johannes Kepler. Kepler foi um adepto de Copérnico. Teve por mestre Michael Mastlin, um teólogo-astrônomo. Em certa altura de sua vida, Kepler foi acusado de ser cripto-calvinista. E é nesse momento que o vemos citando Calvino. Em sua obra Astronomia Nova (1609), logo na introdução, Kepler lembra muito Calvino ao dizer:

As Sagradas Escrituras falam sobre coisas comuns (no ensino daquilo para o qual elas não foram instituídas) a criaturas humanas, numa maneira humana, para que possam ser compreendidas pela humanidade; elas usam o que geralmente é reconhecido pelas pessoas, a fim de fazê-las entender outras coisas, mais elevadas e divinas.34
De modo que aqui, mais uma vez, se constata os efeitos libertadores dos escritos de João Calvino. Ele realmente removeu obstáculos para o desenvolvimento das ciências modernas. Não fosse a honestidade de Calvino, sem falar de toda a sua dedicação em buscar no texto bíblico o seu real significado, possivelmente ainda hoje estaríamos todos em muitas trevas de ignorância. Embora Calvino não estivesse tão preocupado com o avanço do conhecimento científico quanto com o avanço do conhecimento de Jesus Cristo, é inegável e, por que não falarmos irrefutável, a preciosidade da contribuição de João Calvino para o desenvolvimento das ciências modernas. Tal ênfase de Calvino pode ser percebida na citação do professor Hermisten Costa em seu livro Calvino de A a Z.35 Neste livro (no verbete ciência), Costa faz menção às palavras de Calvino ao comentar o texto bíblico de 1Corintios 1.20 “Onde está o sábio? Onde, o escriba? Onde, o inquiridor deste século? Porventura, não tornou Deus louca a sabedoria do mundo?”.36 No comentário desse texto Calvino diz: “O conhecimento de todas as ciências não passa de fumaça quando separado da ciência celestial de Cristo”.37

Portanto, para o reformador genebrino que, segundo Thea B. Van Halsema, fora um homem humilde que viveu sob o lema Soli Deo Gloria,38 nada se compararia ao estudo e ciência de quem foi e é Jesus Cristo. Todavia, seus olhos não estavam fechados para o que acontecia em seu tempo. E foi sua honestidade e acuidade em lidar com as Escrituras Sagradas que permitiram-lhe ser um dos muitos fatores que contribuíram para o desenvolvimento das ciências modernas, eliminando um obstáculo significativo ao avanço das ciências naturais: o literalismo bíblico.


CONCLUSÃO
Podemos concluir afirmando que, na relação entre João Calvino e o desenvolvimento das ciências modernas, há elos muito próximos e intrínsecos. Costa afirma que “a visão teológica de Calvino permeada pela soberania de Deus, fez com que ele procurasse relacionar a aplicação desta soberania às diversas atividades culturais do ser humano”,39 ou seja, Calvino entendia que as ciências e as humanidades deveriam ser usadas para a glória de Deus.

Mesmo a despeito de tantos erros de historiadores, ainda hoje se pode constatar em fontes primárias o quanto João Calvino encorajou o desenvolvimento das ciências naturais em seus dias. A influência de Calvino é impressionante. Como avaliações após avaliações indicam, tanto as ciências físicas quanto as biológicas foram dominadas por calvinistas durante os séculos dezesseis e dezessete.40 Isso se deve aos obstáculos removidos por João Calvino em suas Institutas da Religião Cristã, em seus comentários dos livros da Bíblia, em seus sermões, em suas correspondências e em prefácios escritos por ele.

De fato, Calvino encorajou o avanço das pesquisas científicas e permaneceu tal como um espectador “ciumento”, atento às descobertas de cientistas da astronomia e da medicina, como alguém que desejava conhecer a sabedoria do Criador por meio dos dons dados por ele, ainda que para homens ímpios (graça comum). Mas não só encorajou, removeu obstáculos que impediam tal avanço. De modo brilhante e inédito quebrou paradigmas, lançou luz sobre as Escrituras e nisso também influenciou uma avalanche de pesquisadores em alguns países na Europa.

Alister McGrath faz uma boa reflexão sobre como seria hoje se Calvino ainda tivesse tanta influência sobre o debate religião e ciências. O fato é que, desde o século dezenove, esses dois tópicos têm travado uma batalha mortal. Dentro de nossa cultura ocidental, alguns escritores desonestos e desinformados têm atribuído a Calvino e seus seguidores a culpa por tal dilema, quando, na verdade, para Calvino não existia dilema algum. Esta especulação de McGrath sobre como seria o debate evolucionista se hoje Calvino ainda tivesse grande influência, não passa de um mero raciocínio abstrato. De fato, o que hoje sabemos e podemos afirmar é que as ideias e influência de João Calvino exerceram um grande impulso religioso que resultou na rápida expansão das ciências naturais nos séculos dezesseis e seguintes.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2 ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2007.
CALVINO, João. As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
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COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Pensadores cristãos: Calvino de A a Z. São Paulo: Editora Vida, 2006.
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HALSEMA, Thea B. Van. João Calvino Era Assim. Trad. Jaime Wright. São Paulo: Editora Vida Evangélica, 1968.
HOOYKAAS, R. A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna. Trad. Fernando Dídimo Vieira. Brasília: Editora Polis/UnB, 1988.
KUYPER, Abraham. Calvinismo. Trad. Ricardo Gouvêa e Paulo Arantes. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002.
MCGRATH, Alister E. A Life of John Calvin. Oxford: Blackwell Publishers, 1990.
MCGRATH, Alister E. Reformation thought: an Introduction. Oxford: Blackwell Publishers, 1999.

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1HOOYKAAS, R. A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1972, p.157.
2Nicolau Copérnico, astrônomo polonês, 1473-1543.
3MCGRATH, Alister. A Life of John Calvin. Oxford: Blackwell Publishers, 1990, p. xiv (minha tradução).
4WHITE, A. D. A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom. In: HOOYKAAS, op. cit., p. 157.
5FARRAR, F. W. History of Interpretation. In: HOOYKAAS, op. cit., p. 157.
6MCGRATH, op. cit., p. xvi.
7CALVINO, João. As Institutas ou Tratado da religião cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, I.5.2.
8MCGRATH, op. cit., p. 255.
9MCGRATH, Alister E. Reformation thought: an Introduction. Oxford: Blackwell Publishers, 1999, p.274.
10Confessio Belgica [Confissão de Fé Belga]. Artigo 2. Documento teológico produzido pela Igreja Reformada da Bélgica em 1561.
11CALVINO, As Institutas, I.6.2.
12Ibid., I.14.20.
13MCGRATH. A Life of John Calvin, p.255.
14MCGRATH, op. cit. p., 255.
15Abraham Kuyper fora um jornalista, teólogo e filósofo holandês. Trabalhou intensamente nas áreas acadêmica e política de seu país e chegou a servir como Primeiro Ministro da Holanda de 1901 a 1905. Kuyper foi o fundador da famosa Universidade Livre de Amsterdã.
16KUYPER, Abraham. Calvinismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 119.
17CALVINO, As Institutas, II.2.15.
18HOOYKAAS, op. cit., p. 152.
19COSTA, Hermisten Maia Pereira da. “A reforma calvinista e a educação”. Fides Reformata. v. 13, n. 2, 2008, p. 34.
20CALVIN, John. Calvin's Commentaries. Electronic ed. Galaxie Software: Garland, TX.
21BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2 ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2007, p. 6.
22HOOYKAAS, op. cit., p. 153.
23MCGRATH, op. cit., p. 256.
24MCGRATH, loc. cit.
25MCGRATH, Reformation Thought, p. 275.
26MCGRATH, loc. cit.
27MCGRATH, A Life of John Calvin, p. 256.
28HOOYKAAS, op. cit., p. 160.
30CALVIN, John. Calvin's Commentaries. Electronic ed. Galaxie Software: Garland, TX.
31HOOYKAAS, op. cit., p. 154, 164.
32Ibid., p. 160.
33Ibid., p. 160-161.
34KEPLER, Johannes. Astronomia Nova. In: HOOYKAAS, op. cit., p. 161.
35COSTA, Hermisten Maia Pereira da. Pensadores Cristãos: Calvino de A a Z. São Paulo: Editora Vida, 2006.
36Bíblia Sagrada. op. cit., p. 1153.
37CALVIN, John. Calvin's Commentaries. Electronic ed. Galaxie Software: Garland, TX.
38HALSEMA, Thea B. Van. João Calvino Era Assim. São Paulo: Editora Vida Evangélica, 1968, p. 206.
39COSTA, Hermisten Maia Pereira da. “A reforma calvinista e a educação”. Fides Reformata, v. 13, n. 2, 2008, p. 35.
40MCGRATH, op. cit., p. 254.

Fonte: http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=350

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