quarta-feira, 13 de abril de 2016

Os Evangelhos - Críticas e alternativas à teoria das duas fontes


Após a sua formulação por H. J. Holtzmann em 1863, a teoria das duas fontes alcançou uma predominância rara na história da exegese, pelo menos no campo protestante da interpretação dos evangelhos. Segundo R. Riesner, a igreja católica foi a que por mais tempo se opôs a essa teoria. Ainda em 1912 um decreto da comissão bíblica papal declarou que “a teoria não tinha o apoio do testemunho da tradição e nem de argumentos históricos”. Mesmo que oficialmente esse decreto não tenha sido revogado, após a segunda guerra mundial os estudiosos católicos do NT adotaram a teoria das duas fontes sem restrições.

R. Riesner diz:
Em 1960 parece ter vindo a vitória final. “O trabalho crítico sobre as fontes dos sinópticos chegou ao seu final com a teoria das duas fontes” anunciou P. Vielhauer. E na Einleitung in das Neue Testament (Introdução ao NT) de W. Marxsen lemos: “A expressão teoria das duas fontes se afirmou tão fortemente na pesquisa que somos tentados a abandonar o termo teoria (no sentido de hipótese). Pois, de fato, podemos considerá-la uma solução segura e definitiva… .” Todo estudante de teologia estuda essa conclusão como segura e definitiva no seminário. Questionamentos e discussões sobre alternativas são perda de tempo. Até o padre que prepara exegeticamente um texto sinóptico para a pregação conta com essa solução segura e definitiva.

Será que uma teoria que conquistou a confiança tão grande dos estudiosos pode ser questionada seriamente? R. Riesner admite que sim ao entrar na discussão das críticas que foram levantadas a partir da metade dos anos 60. Não é possível fazer o detalhamento dessas críticas aqui. Vamos apresentar apenas as linhas gerais dessa posição para podermos entender as críticas levantadas.

Pesquisas matemático-estatísticas feitas sobre o problema sinóptico levaram a conclusões que estão questionando a teoria das duas fontes como única solução possível para o problema. Os estudiosos B. de Solages e R. Morgenthaler provaram que é possível imaginar uma dinâmica de uso e dependência entre os sinópticos bastante variada. Disso faz parte a solução que coloca Marcos como o mais antigo, mas apenas como uma solução entre muitas outras. O matemático francês L. Frey examinou a seqüência das perícopes, das frases e das palavras dos evangelhos sinópticos com métodos de eficiência comprovada em outros campos da ciência e concluiu que não é possível demonstrar a dependência direta entre os sinópticos. Melhor seria explicar a semelhança entre os sinópticos pelo fato de terem se baseado em uma variedade de fontes pré-sinópticas (cf. Lc 1.1-4).

O argumento principal de Lachmann a favor de Marcos como o evangelho primitivo — o fato de que Mateus e Lucas concordam na seqüência das perícopes e da formulação das palavras naqueles textos em que são paralelos a Marcos — é discutido e questionado por vários estudiosos. Eles explicam esse fenômeno com outros aspectos da teoria da utilização:
R. Riesner cita ainda alguns critérios de pesquisa que podem ser aplicados à teoria de Marcos como o evangelho primitivo. Se for demonstrado que ela não pode ser sustentada, uma coluna da teoria das duas fontes cairia, e com isso a teoria toda. Os seguintes critérios entram em discussão:

A teoria de Marcos como mais antigo é questionável se:
- textos em Mateus e Lucas que diferem de Marcos não puderem ser explicados satisfatoriamente;
- no contraste com Marcos, Mateus e Lucas soarem muito semíticos na sua linguagem e mostrarem deteriorações no estilo;
- as diferenças de Mateus e Lucas com a versão de Marcos puderem ser entendidas como mais próximas da tradição oral;
- Marcos for menos judeu do que Mateus e Lucas;
- diferenças entre os sinópticos puderem ser explicadas como variantes de tradução do aramaico;
- Mateus e Lucas concordarem em oposição a Marcos (os chamados “minor agreements”, concordâncias menores).

Após aplicar esses critérios a diversos textos sinópticos, R. Riesner chega à seguinte conclusão: “A teoria das duas fontes tem a grande vantagem de simplificar consideravelmente o problema das fontes dos sinópticos e também de ser uma teoria facilmente aplicável. Talvez aqui esteja um grande motivo para a popularidade da teoria. … Na minha opinião, a teoria das duas fontes traz mais dúvidas do que respostas. Para maior clareza, deveríamos falar de uma hipótese das duas fontes. A procura por soluções que venham ao encontro da diversidade de questões apresentadas pelo problema sinóptico ainda não chegou ao fim.”

R. Riesner não é o único que tem essa visão crítica da teoria das duas fontes, o que fica evidente nas observações de K. Haacker:
A teoria das duas fontes convence pela sua simplicidade. Mas isso não é argumentohistórico, e sim um convite para o comodismo. Ninguém pode dizer a priori que os procedimentos na origem dos evangelhos devem ter sido simples, pois não conhecemos processos literários comparáveis sobre os quais tenhamos melhores informações. Ao contrário, Lucas diz na introdução do seu evangelho ter conhecido e usado mais do que duas fontes. O problema sinóptico é, portanto, parecido com uma equação de um número desconhecido de variáveis. Não é aconselhável inventar, a esmo, ferramentas hipotéticas de auxílio para a solução do problema. Também não deveríamos ignorar a possibilidade da existência de outras fontes desaparecidas.

Será que após essas observações o leitor dos evangelhos sinópticos terá de ficar sem respostas sobre a história da sua origem? Será que os elementos que temos no NT, unidos às informações que temos da igreja antiga, não podem nos conduzir a conclusões mais convincentes do que as apresentadas para a teoria das duas fontes? Talvez a hipótese dos fragmentos (diegesis) não deveria ter sido abandonada tão rapidamente. Seja como for, no final do século passado o estudioso do NT Frédéric Godet apresentou uma alternativa para a teoria das duas fontes que merece reflexão.

Em relação ao problema sinóptico ele se pronunciou no compêndio Bibelstudien (Hannover, 1878) e na sua Einleitung in das NT (Introdução ao NT). O comentário sobre Lucas também mostra a sua posição sobre o assunto.

Ponto de partida para as reflexões de Godet é o conteúdo dos sinópticos, que ele tenta aceitar sem opiniões pré-concebidas. Para interpretar e explicar esse conteúdo, Godet faz uso das informações sobre o ensino e a pregação da igreja primitiva em Atos. Em contraste com muitos outros autores, ele tem grande respeito também pelas informações da igreja dos primeiros séculos sobre a autoria dos três primeiros evangelhos. A posição de Godet em relação ao problema sinóptico é caracterizada pela grande confiança na confiabilidade da versão sinóptica e por uma desconfiança profunda nas reconstruções da teoria das duas fontes por causa das contradições não resolvidas associadas a ela.

Com base nisso, Godet chegou às seguintes conclusões:
Desde o início existiu uma tradição apostólica das palavras e dos atos de Jesus. O “ensino apostólico” citado em Atos 2.42 não era afirmação teológica sobre Jesus Cristo, tendo em vista a simplicidade dos apóstolos. Essa tarefa ficou reservada principalmente para Paulo. No início, é verdade, o ensino apostólico era predominantemente transmissão das palavras e atos de Jesus. Pois esse era o critério para a escolha de um apóstolo: ele deveria ser testemunha ocular dos fatos da vida de Jesus (At 1.21).

Com isso Godet acredita que, já no início da história do cristianismo, os relatos das testemunhas oculares da igreja primitiva se desenvolveram e foram colocados em forma escrita.

Pelo fato de se falar aramaico e grego na igreja primitiva (veja o conflito em At 6), era necessário que já no início os relatos das testemunhas oculares fossem traduzidos para o grego. Provavelmente existiu algo como a tradução grega autorizada da versão apostólica.

Godet reconhece em Mateus e Pedro os apóstolos transmissores dessa versão. Os pontos principais da versão formada por Pedro seriam os atos de Jesus na Galiléia e em Jerusalém. Com isso teria surgido a versão de Jerusalém na qual não só perícopes isoladas teriam se firmado, como também unidades de texto gregas mais extensas. Pedro teria transmitido essa forma básica da versão de Jerusalém nas suas viagens, e complementado com experiências pessoais da convivência com Jesus. 

Segundo as informações da igreja antiga, João Marcos o teria acompanhado nas viagens como intérprete. O evangelho de Marcos teria surgido com base nessas viagens e estaria baseado, por um lado, na tradição de Jerusalém, e por outro, nos acréscimos das experiências pessoais de Pedro. Godet, com isso, adota a informação transmitida por Papias sobre a origem do evangelho de Marcos.

A ênfase da versão transmitida por Mateus estaria nos ditos e discursos de Jesus (logia). Nesse sentido ele aceita a informação de Papias sobre Mateus. A forma básica dessa versão teria sido escrita em aramaico, pois essa era a língua que Jesus falava. Pelo fato de a igreja primitiva falar duas línguas, Mateus teria preparado uma tradução grega, que, segundo Godet, seria claramente perceptível nos discursos do evangelho de Mateus.

Essas versões dos apóstolos Mateus e Pedro teriam sido registradas por muitos em aramaico e em grego. Dessa forma também teriam surgido agrupamentos mais extensos de perícopes. Essas versões teriam formado a base da proclamação no cristianismo primitivo, como Lucas 1.1-4 claramente indica. Em outras palavras: no princípio da Igreja de Jesus Cristo existiam os fragmentos (diegesis), que foram editados pela igreja de Jerusalém até o ano de 50 d.C. Formavam o fundamento de ensino do cristianismo primitivo. Era de esperar que também enfatizassem os escritos que chamamos de evangelhos.

No sentido acima, os fragmentos tiveram influência sobre os escritos de Marcos, pois este evangelista adotou a versão transmitida e ampliada por Pedro com as suas experiências pessoais.

O evangelho segundo Mateus recebeu o seu nome do fato de ter incorporado, além da tradição dos fragmentos de Jerusalém, as palavras de Jesus transmitidas pelo apóstolo Mateus. Não sabemos quem é o autor desse evangelho tão abrangente. Ele provavelmente vem do meio judaico, pois tenta demonstrar que a história de Israel se cumpre na vida, sofrimento, morte e ressurreição de Jesus.

O evangelho de Lucas está baseado em um discípulo de Paulo, de quem ele aprendeu o significado do evangelho para os gentios. Ele está fascinado por esse evangelho. Ele conhece a grande variedade das versões escritas da vida de Jesus, faz uma avaliação delas, aprofunda-se nas pesquisas, descobre fatos novos, que não tinham sido divulgados até então, e coloca tudo numa redação própria, em que o evangelho para os gentios define o objetivo teológico do seu escrito (Lc 1.1-4).

Godet acredita que os três evangelhos surgiram na mesma época em três lugares diferentes e de forma independente um do outro: Marcos em Roma (64), Mateus no oriente (66) e Lucas na Síria (66). Até que ponto é possível comprovar essa suposição será discutido nos capítulos seguintes, em que trataremos cada evangelho separadamente.

No final da sua proposta, Godet deixa transparecer o que o orientou na busca por uma alternativa à teoria das duas fontes. É a questão da confiabilidade dos evangelhos. Na sua opinião, ela é questionada pela hipótese da utilização (dependência literária). É evidente que dessa perspectiva, apóstolos ou discípulos de apóstolos não são levados a sério como portadores de informações ou mesmo como autores dos evangelhos. Para reforçar essa posição, vemos em muitas introduções, a pergunta: Como o apóstolo Mateus iria buscar e depender de informações do discípulo de apóstolo João Marcos? Baseado ainda em outros argumentos, esse questionamento tem o resultado de pôr em dúvida a autoria de Mateus para o primeiro evangelho, o que contraria a posição da igreja antiga. Com isso a confiança de muitas pessoas nos evangelhos certamente foi abalada.

Se, no entanto, conseguimos provar que por trás dos evangelhos está a versão dos apóstolos, fortaleceremos a confiabilidade dos conteúdos a nós transmitidos. Também será mais fácil entender por que a concordância em todos os detalhes não era possível nem necessária. Com isso, os evangelhos ganham o caráter de relatos de testemunhas que, exatamente pela sua diversidade, se tornam tanto mais confiáveis.

O estudante do NT que está convencido da veracidade e da confiabilidade da transmissão bíblica dos fatos, saberá avaliar a proposta de Godet e usará as sugestões para a solução do problema sinóptico como estímulo para a reflexão mais profunda sobre o assunto. Isso porque as incertezas quanto à teoria das duas fontes são evidentes e é necessário buscar soluções alternativas. É preciso estar aberto para a possibilidade de uma forma modificada de a hipótese dos fragmentos ser demonstrada como o modelo mais convincente de solução do problema sinóptico.


Fonte:  Introducao e Sintese do Novo Testamento - Gerhard Horster

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