domingo, 3 de janeiro de 2016

SEGUNDO SÉCULO DA ERA CRISTÃ


REINADOS DE NERVA, TRAJANO E MARCO AURÉLIO
  Havia apenas dezoito meses que Domiciano tinha morrido, quando a igreja, que ficara isenta de perseguição durante o curto reinado de Coccei Nerva, seu sucessor, começou novamente a sofrer. Nerva era um homem de caráter brando e generoso, e tratou bem os cristãos; e com uma benignidade digna de louvor restabeleceu todos que tinham sido expatriados pela perseguição de Domiciano. Porém, depois de um reinado de dezesseis meses, foi atacado por uma febre, da qual nunca se curou.
  O seu sucessor, Trajano, deixou os cristãos tranqüilos por algum tempo, mas sendo levado a suspeitar deles, determinou que se renovasse a perseguição, e, sendo possível, que se exterminasse a nova religião, por meios decisivos e severos. Parecia ao seu espírito orgulhoso que o cristianismo era uma ofensa, um insulto para a natureza humana, e que o seu ensino era (como efetivamente o era) inteiramente oposto à filosofia dos seus tempos: uma filosofia que elevava os homens a deuses, e tornava a humildade e brandura dos cristãos efeminada e desprezível.
  Mas Trajano não tinha a crueldade de Nero, nem de Domiciano; e podia-se notar nessa ocasião uma perplexidade e indecisão na sua conduta, que contrastava, de uma maneira notável, com a inflexibilidade de propósito que ordinariamente mostrava nos seus atos. Pela sua carta a Plínio, governador de Bitínia e Ponto, pode-se ver que ele não sentia prazer algum na tortura ou na execução dos seus súditos. Nessa carta diz ele claramente: "Não se deve andar a procura dessa gente" e acrescenta: "se alguém renunciar ao cristianismo, e mostrar a sua sinceridade suplicando aos nossos deuses, alcançará o perdão pelo seu arrependimento". Em suma, era a religião, e não os seus adeptos, que Trajano odiava.

UMA CARTA DE PLÍNIO
  A carta de Plínio ao imperador e a resposta deste, são cheias de interesse. Um dos períodos dessa carta rezava assim:
  "Todo o crime ou erro dos cristãos se resume nisto: têm por costume reunirem-se num certo dia, antes do romper da aurora, e cantarem juntos um hino a Cristo, como se fosse um deus, e se ligarem por um juramento de não cometerem qualquer iniqüidade, de não serem culpados de roubo ou adultério, de nunca desmentirem a sua palavra, nem negarem qualquer penhor que lhes fosse confiado, quando fossem chamados a restituí-lo. Depois disto feito, costumam separar-se e em seguida reunirem-se de novo, para uma refeição simples da qual partilham em comum, sem a menor desordem, mas deixaram esta última prática após a publicação do edital em que eu proibia as reuniões, segundo as ordens que recebi. Depois destas informações julguei muito necessário examinar, mesmo por meio da tortura, duas mulheres que diziam ser diaconisas, mas nada descobri a não ser uma superstição má e excessiva". Isto era tudo o que Plínio podia dizer. Não é para admirar que um homem estranho à graça de Deus visse na religião de Jesus Cristo, desprezado e humilde, apenas uma superstição má e excessiva. Não é motivo de admiração que o urbano e instruído governador, cuja fama era conhecida no mundo inteiro, escrevesse com tal desdém a respeito de um povo cujas opiniões eram diferentes das suas. "O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porquanto se discernem espiritualmente" (1 Co 2.14).

MARTÍRIO DE INÁCIO
  Inácio, que dizem ter conhecido os apóstolos Pedro e João, e ter sido ordenado bispo de Antioquia pelo apóstolo João, foi martirizado durante essa época. O zelo com que ambicionava sofrer o martírio o expôs a censuras de vários historiadores, e com certa razão. Conta-se que na ocasião em que Trajano visitou Antioquia, ele pediu para ser admitido a presença do imperador, e depois de explicar, por bastante tempo, as principais doutrinas da religião cristã, e mostrar o caráter inofensivo daqueles que a professavam, pediu que se fizesse justiça.  Contudo o imperador recebeu o seu pedido com desprezo, e depois de censurar aquilo que Trajano se aprazia de chamar a sua superstição incurável, ordenou que fosse levado para Roma e lançado às feras.
Enquanto atravessava a Síria, Inácio escreveu várias cartas às igrejas, exortando-as à fidelidade e paciência, e avisando-as seriamente dos erros que se ensinavam. Em uma das epístolas escreve: "Desde a Síria até Roma estou lutando com feras por terra e por mar, de noite e de dia sendo levado preso por dez soldados cuja ferocidade iguala a dos leopardos, e os quais, mesmo quando tratados com brandura, só mostram crueldade. Mas no meio destas iniqüidades, estou aprendendo... Coisa alguma, quer seja visível ou invisível, desperta a minha ambição, a não ser a esperança de ganhar Cristo. Se o ganhar, pouco me importarei que todas as torturas do Demônio me acometam, quer seja por meio do fogo ou da cruz, ou pelo assalto das feras ou que os meus ossos sejam separados uns dos outros e meus membros dilacerados, ou todo o meu corpo esmagado".
  Quando Inácio chegou a Roma, foi conduzido à arena e, na presença da multidão que enchia o teatro, tranqüilamente esperou a morte. Quando o guarda dos leões veio soltá-los da jaula o povo quase enlouqueceu, e batia as palmas e gritava com uma alegria brutal, mas o velho mártir conservou-se firme.
  "Sou, disse ele, como o trigo debulhado de Cristo, que precisa de ser moído pelos dentes das feras antes de se tornar em pão". Não precisamos entrar nos detalhes dos poucos momentos que se seguiram.
  O medonho espetáculo acabou-se depressa, e antes de aquela gente ter chegado a suas casas, tinha Inácio recebido a coroa que ambicionara, e estava já com o Senhor na Glória.

TRINTA ANOS DE SOSSEGO
  No ano 117 morreu Trajano, e o seu sucessor, Adriano, continuou as perseguições. E foi só no ano 138, quando Antônio Pio subiu ao trono, que os cristãos ficaram de alguma maneira aliviados dessa opressão. Com o seu reinado brando e pacífico começou um período de sossego que durou perto de trinta anos; e durante esse tempo a Palavra de Deus teve livre curso e Cristo foi glorificado. E certo que houve alguns casos isolados de opressão, mas a perseguição geral tinha desaparecido e o Evangelho depressa se espalhou por todas as províncias dos domínios romanos.
  A gloriosa mensagem foi levada para o Ocidente até nas extremidades da Gália e para o Oriente até a Armênia e a Assíria; e milhares daqueles que em vão tinham procurado a paz de coração nas mitologias de Roma e do Egito, escutaram avidamente as palavras da vida, e espontaneamente se tornaram discípulos de Cristo.

UMA NOVA PERSEGUIÇÃO
  Contudo, com a subida ao trono de Marco Aurélio, começou uma nova opressão, e no segundo ano do seu reinado, as nuvens da perseguição começaram de novo a amontoar-se.
  As várias inquietações quase se seguiram uma após outra com espantosa rapidez, e que pareciam, às vezes, perturbar as próprias instituições do Império, forneceram um pretexto fácil para a renovação das perseguições; e logo em seguida o antigo ódio pelos cristãos que havia muito estava guardado nos corações dos ímpios, começou mais uma vez a manifestar-se pelo antigo grito "Lancem os cristãos aos leões!" tão terrivelmente familiar aos ouvidos de muitos, e que passou como um sopro pestilento pelo Império Oriental. Assim teve origem a quarta perseguição geral.

MARTÍRIO DE POLICARPO
  A maior força da tempestade que se aproximava sentiu-se na Ásia Menor, onde saíram os novos editos, e o nome de Policarpo, bispo em Esmirna, apareceu brilhantemente na lista dos mártires daquele tempo. Ao contrário de Inácio que se expunha desnecessariamente à vontade cega da populaça, Policarpo não recusou escutar os conselhos e pedidos dos seus amigos, e quando viu que estava sendo espiado em Esmirna retirou-se para uma aldeia próxima, e ali continuou o seu trabalho.
  Sendo perseguido, foi para outra aldeia, exortando o povo que se encontrava no seu caminho; e assim foi vivendo dessa maneira errante até que os seus inimigos descobriram o lugar onde se refugiava. Então o velho bispo (avisado, segundo dizem, num sonho de que deveria glorificar a Deus, sofrendo morte de mártir) resignou-se com paciência à vontade de Deus, e entregou o seu corpo às mãos dos oficiais encarregados de o prenderem. Antes de deixar a casa, deu ordem para que lhes dessem de comer; e, em seguida, parecendo saber antecipadamente o que esperava, encomendou-se a Deus.  Diz-se que o fervor de sua oração comoveu de tal maneira os oficiais que eles se arrependeram de ser os instrumentos da sua captura. Montaram-no num jumento, e trouxeram-no para Esmirna, onde estava reunida uma grande multidão para celebrar a festa dos pães asmos.
  Por consideração pela sua idade avançada e pela sua sabedoria, Nicites, homem de grande influência, e seu filho Herodes, oficial da cidade, foram ao seu encontro e, fazendo-o entrar no seu carro, instaram com ele para que assegurasse a sua liberdade, tributando honras a César e consentindo em oferecer sacrifícios aos deuses. Ele recusou-se a isto e, por esse motivo, foi empurrado do carro com tal violência abaixo que na queda torceu uma coxa. Mas o velho servo de Deus continuou pacificamente o seu caminho, sem se perturbar com a rudeza de Herodes, indiferente aos gritos da multidão que, no seu ódio, empurrava-o de um lado para outro; e deste modo chegaram à arena.

POLICARPO E O GOVERNADOR
  Era este o sítio onde tinham chegado os jogos e exposições sagradas; e conta-se que na ocasião de entrar na arena, uma voz, como que vinda do céu, exclamou: "Sê forte Policarpo, e porta-te como um homem". Seja como for, um poder que não era humano susteve o servo de Deus, e quando o cônsul, comovido com o seu aspecto venerável, pediu-lhe que jurasse pela alma de César, e dissesse: "Fora com os ímpios!" O velho mártir, apontando para os bancos cheios de gente, repetiu com tristeza: "Fora com os ímpios!" "Jurai", disse o governador, compadecido, "e eu vos mandarei embora. Renegai a Cristo." Mas Policarpo respondeu com brandura: "Tenho-o servido durante oitenta e sete anos, e nunca Ele me fez mal. Como posso eu agora blasfemar contra o meu Rei e Salvador?"
  "Jurai pela alma de César", repetiu o governador ainda inclinado à compaixão, mas Policarpo respondeu: "Se julgais que hei de jurar pela alma de César como dizeis, e fingis não saber quem eu sou, ouvi a minha confissão livre: sou cristão; e se desejais conhecer a doutrina do cristianis-mo, concedei-me um dia para falar-vos e escutai-me". 0 governador, notando com inquietação o clamor da multidão, pediu ao ancião que abjurasse sua fé, mas Policarpo se negou a fazer isso. Tinham-lhe ensinado a honrar os poderes superiores, e sujeitar-se a eles porque eram ordenados por Deus, mas quanto ao povo, principalmente no estado atual de turbulência em que se encontrava, nada lhe apresentaria em sua defesa. "Tenho à mão animais ferozes", disse o governador, "lançar-vos-ei a eles, se não mudardes de opinião" - "Mandai-os vir", disse Policarpo tranqüilamente.
  O velho peregrino alegrava-se com a perspectiva de se ver prontamente livre de um mundo ímpio e cheio de perseguições, e sua tranqüila intrepidez exasperou o governador, que por esse motivo ameaçou queimá-lo, mas o intrépido Policarpo respondeu: "Ameaçais-me com o fogo que arde por um momento, e depressa se apaga, mas nada sabeis da pena futura, e do fogo eterno reservado aos ímpios".
  O governador perdeu completamente a paciência, mandou um arauto apregoar no meio da arena: "Policarpo é cristão". Esta proclamação foi repetida três vezes, como era de costume e a raiva da população chegou ao auge. Viram no velho prisioneiro um homem que tinha desprezado os seus deuses, e cujo ensino tinha retirado o povo dos seus templos, e tornou-se geral o grito de: "Lancem Policarpo aos leões!"
  Mas a hora do espetáculo já tinha passado, e o asiarca que tinha aos seus cuidados os espetáculos públicos recusou-se a fazer a vontade do povo. Se ainda estavam dispostos a dar-lhe a morte, tinham de escolher qualquer outro dia: assim pois, se ouviu imediatamente o grito para que Policarpo fosse queimado. A lenha e a palha estavam ali à mão, e a vítima depois de ser despojada da sua capa, foi levada às pressas para o poste. Queriam pregá-lo a ele, mas Policarpo pediu-lhes para ser simplesmente atado, e concederam-lhe isso.
  Tendo em seguida recomendado a sua alma a Deus deu o sinal ao algoz, e este logo lançou fogo à palha. Mas, diz a tradição, os acontecimentos maravilhosos do dia ainda não tinham chegado ao seu fim. Por qualquer razão desconhecida, as chamas não tocaram no corpo de Policarpo, e os espectadores, vendo-se enganados, olhavam uns para os outros na maior admiração.
  Contudo, o ódio venceu a superstição, e pediram ao algoz que matasse a vítima a golpes de espada. Assim se fez, o golpe fatal foi imediatamente dado, e naquele momento de cruel martírio, o fiel servo do Senhor entregou a alma a Deus, e ficou para sempre longe do alcance dos seus perseguidores.

OUTROS MARTÍRIOS
  Muitos outros, em nada inferiores na fé e valor a Policarpo, ainda que menos distintos pelas suas aptidões, sofreram durante esta perseguição, e seria de muito interesse falar de alguns se o espaço permitisse. Seria, por exemplo, interessante falar de Germano, um jovem cristão cuja constância e coragem deram um testemunho tão brilhante da realidade de sua fé, mesmo na hora solene de sua morte, que muitos se converteram; ou de Justino de Nápoles, o qual, tendo estudado todos os sistemas filosóficos, e ocupando um lugar de destaque entre os professores do seu tempo, tomou-se com alegria um discípulo do meigo e sublime Jesus. E maravilhoso dizer que ele depois selou com o seu sangue o testemunho que tinha dado e alcançou no seu martírio um nome nobre - o de Justino, o filósofo, por que ainda é conhecido, e pelo qual será chamado para receber a sua coroa de mártir.

PERSEGUIÇÃO EM LIÃO E VIENA
  Em Lião e Viena também a fé dos crentes foi duramente provada, porque o inimigo das almas andava muito ativo. Toda a espécie de tortura que o espírito humano podia imaginar era infligida aos cristãos daquelas cidades; mas o número aumentava sempre; e qualquer esforço que se fizesse para exterminar a nova religião não fazia senão espalhá-la cada vez mais, e com maior rapidez. Foi ali que Blandina, uma escrava de aparência fraca e franzina, depois de sofrer com exemplar paciência as mais extraordinárias torturas, durante as quais os próprios perseguidores se cansaram, ganhou a coroa do martírio, e morreu dando glórias a Deus.
  Ali também Santos, diácono da igreja, e Mauro, que havia pouco se convertera ao cristianismo, sofreram nobremente pela verdade, bem como Attalo, de Pérgamo; Potimo, bispo de Lyon, e muitos outros.
  E assim, da mesma maneira que o metal precioso passa pelo fogo do refinador que o torna puro, também a Igreja de Deus passou pelo fogo e aflição, e uma grande parte da escória que andava ligada a ela separou-se e consumiu-se, enquanto que as fagulhas que saem do lume, levadas para aqui e para ali pelo vento da perseguição, atearam no peito de muitos o desejo de compreenderem este extraordinário assunto e, por assim dizer, entenderem a natureza deste novo metal que de tal modo podia suportar a prova de fogo.

UMA CARTA A JUSTINO
  Parece que até este tempo, a igreja tinha conservado aquela simplicidade de conduta e culto de que temos alguns belos exemplos em Atos dos Apóstolos, e em outros livros. Conta o mártir Justino as práticas que se faziam no seu tempo, e que não deixam de ser interessantes: "Encontramo-nos no dia do Senhor", diz ele, "para adoração, nas cidades e vilas; lemos nos livros dos profetas e das memórias dos apóstolos tanto quanto o tempo nos permite. Acabada a leitura, o presidente ou bispo, num discurso ou sermão, exorta os fiéis a seguirem aqueles excelentes exemplos; em seguida todos se levantam e oram juntos. Depois disto trazem pão, vinho e água, e o presidente faz oração e dá graças conforme a sua habilidade, e toda a gente diz "Amém". Faz-se então a distribuição dos elementos abençoa-dos a todos os presentes, e aos ausentes manda-se pelos diáconos.
  "Aqueles que são ricos, e estão dispostos a contribuir dão o dinheiro que querem, cada qual conforme a sua vontade; e o que se junta é entregue ao presidente, que o distribui cuidadosamente para os órfãos e as viúvas, e para aqueles que por doença ou outro qualquer motivo estão necessitados, e também aos que se acham presos, e aos estrangeiros que residem conosco. Em suma, à todos aqueles que precisam de auxílio".
  Que bela simplicidade de vida e de culto! Na verdade é isso em parte um exemplo da continuação "na doutrina dos apóstolos e no partir do pão e na oração", que se recomenda no livro de Atos dos Apóstolos, e que constitui um distintivo da primitiva cristandade.


Fonte:  História do Cristianismo - A. Knight & W. Anglin - CPAD

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